Uma introdução a Mrs. Dalloway

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É DIFÍCIL - TALVEZ IMPOSSÍVEL - a um escritor dizer qualquer coisa sobre sua obra. Tudo o que ele tem a

dizer, já disse da maneira mais completa, da melhor maneira que lhe é possível, no corpo do

próprio livro. Se não conseguiu deixar claro o que pretendia dizer, é pouco provável que

consiga num prefácio ou num posfácio de algumas páginas. E a mente do autor tem outra

característica que também é avessa a introduções. É inóspita para sua cria como uma pardoca

com seus filhotes. Depois que as avezinhas aprendem a voar, têm de voar; quando saem do

ninho, a mãe começa talvez a pensar em outra prole. Da mesma forma, depois de impresso e

publicado, um livro deixa de ser propriedade do autor; este o confia ao cuidado dos outros;

toda a sua atenção é demandada por algum novo livro, que não só expulsa o predecessor do

ninho, como também costuma denegrir sutilmente o caráter do outro em comparação ao dele

mesmo.

É verdade que o autor, se quiser, pode nos contar alguma coisa de si e de sua vida que não

está no romance; e é algo que devemos incentivar. Pois não existe nada mais fascinante do que

se enxergar a verdade por trás daquelas imensas fachadas de ficção - isso se a vida for de fato

verdadeira e se a ficção for de fato fictícia. E provavelmente a ligação entre ambas é de

extrema complexidade. Livros são flores ou frutas pendentes aqui e ali numa árvore com

raízes profundas na terra de nossos primeiros anos, de nossas primeiras experiências. Mas,

aqui também, para contar ao leitor alguma coisa que sua imaginação e percepção ainda não

descobriu, seria necessário não um prefácio de uma ou duas páginas, e sim uma autobiografia

em um ou dois volumes. Devagar, com cuidado, o autor se lançaria ao trabalho, desenterrando,

desnudando, e, mesmo depois de trazer tudo à superfície, ainda caberia ao leitor decidir o que

importaria e o que não importaria. Assim, quanto a Mrs. Dalloway, a única coisa possível no

momento é trazer à luz alguns pequenos fragmentos, de pouca ou talvez nenhuma importância:

por exemplo, que Septimus, que depois se torna o duplo dela, não existia na primeira versão; e

que Mrs. Dalloway, originalmente, ia se matar ou talvez apenas morrer no final da festa. Esses

fragmentos são humildemente oferecidos ao leitor, na esperança de que, como outras

miudezas, possam ser úteis.

Mas, se temos demasiado respeito pelo leitor puro e simples para lhe apontar o que deixou

passar ou lhe sugerir o que deve procurar, podemos falar de modo mais explícito ao leitor que

despiu sua inocência e se tornou crítico. Pois, ainda que se deva aceitar em silêncio a crítica,

seja positiva ou negativa, como o legítimo comentário a que convida o ato da publicação, de

vez em quando aparece alguma afirmação que não se refere aos méritos ou deméritos do livro

e que o escritor sabe que é equivocada. É uma afirmação dessas que se tem feito sobre Mrs.

Dalloway com frequência suficiente para merecer talvez uma objeção. Disseram que o livro

era fruto deliberado de um método. Disseram que a autora, insatisfeita com a forma de ficção

em voga na época, decidira pedir, tomar emprestado, roubar ou mesmo criar outra forma

própria. Mas, até onde é possível ser honesto sobre o misterioso processo mental, os fatos são

outros. Insatisfeita, a escritora podia estar; mas sua insatisfação se dirigia basicamente à

natureza, por dar uma ideia sem lhe prover uma casa onde pudesse morar. Os romancistas da

geração anterior não ajudaram muito - aliás, por que haveriam de ajudar? Evidentemente, a

morada era o romance, mas ele parecia construído sobre o projeto errado. A essa ressalva, a

ideia começou, como começa a ostra ou o caracol, a secretar uma casa própria. E assim

procedeu sem nenhum rumo consciente. O caderninho que abrigava uma tentativa de montar um

projeto logo foi abandonado e o livro cresceu dia a dia, semana a semana, sem projeto

nenhum, exceto o que era determinado a cada manhã na atividade de escrever. Desnecessário

dizer que a outra maneira - construir uma casa e depois morar nela, desenvolver uma teoria e

então aplicá-la, como fizeram Wordsworth e Coleridge - é igualmente boa e muito mais

filosófica. Mas, no presente caso, foi necessário antes escrever o livro e depois inventar uma

teoria.

Se, porém, assinalo este ponto específico dos métodos do livro para discussão, é pela razão

citada: porque se tornou tema de comentário entre os críticos, e não porque mereça atenção em

si. Pelo contrário, quanto mais bem-sucedido o método, menos atenção ele atrai. O que se

espera é que o leitor não dedique nenhum pensamento ao método ou à falta de método do

livro. O que lhe diz respeito é apenas o efeito do livro como um todo em sua mente. Desta

questão, a mais importante de todas, ele é um juiz muito melhor do que o escritor. Na verdade,

tendo tempo e liberdade para moldar sua própria opinião, ao fim e ao cabo ele é um juiz

infalível. É a ele, então, que a escritora entrega Mrs. Dalloway e sai do tribunal confiante de

que o veredito, seja a morte imediata ou alguns anos mais de vida e liberdade, em qualquer

dos casos será justo.

Londres, junho de 1928

Mrs. DallowayWhere stories live. Discover now