Capítulo 1

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   O céu. Nossa via láctea possui de 200 a 400 bilhões de estrelas, pontos luminosos jogados por cima de uma tinta preto azulado, também somos pequenos pontos jogados por cima de uma tinta mais colorida, misturando tons de verde e azul. Pontos que em uma linha de vida são destinados a conhecer quem amam. Amar. O que é amar? O amor é um sentimento destrutivo e ao mesmo tempo consegue ser delicado, o amor é como café, senão adoçarmos ele fica amargo, há quem goste, eu escolho com muito açúcar. Alguns desistem de amar, as experiências definem o ser, mas o ser também pode definir as experiências, depende das suas escolhas. Peguei pesado né? "Suas" é uma palavra forte, vou amenizar, depende das nossas escolhas, no que nos moldam dia-a-dia.

   Está amanhecendo e me levanto para trabalhar, trabalho em uma firma de negócios, basicamente é contabilidade. Quando acordo meus sistemas ainda estão iniciando, não sei se é assim com vocês. Tomo coragem para enfrentar meu desafio mais uma vez: encaro o chuveiro as 06:00 da manhã. Tiro minhas roupas e entro com cara de assustado, como se tivesse enfrentado algum monstro mitológico. A água quente percorre minha pele como um rio percorre um pequeno vale. Me enxugo. O problema de trabalhar no ramo dos negócios é a gravata. Eu odeio gravatas, apertam seu pescoço como uma corda, mas é parte do meu uniforme diário. É quinta-feira. Passo uma de minhas colônias masculinas, aquelas que fedem a queijo e meia suja, parte do uniforme. De volta ao quarto. Minha noiva acordou. Era verão quando nos conhecemos, foi em um bar, sempre é em um bar. Eu entrei no bar, já estava tocando músicas que você só vê no bar, pedi uma cerveja e aparentemente também pedi a mulher da minha vida. Ela apareceu logo após a cerveja, sentou-se ao meu lado como quem não queria nada, elas nunca querem! Eu dava pequenas olhadas para ela, entregando o jogo mas mantendo ele em minhas mãos, até que tomei um gole de cerveja, que me encorajou bastante, e conversei com ela. Era difícil puxar assunto, mas ele sempre estava lá, perguntei sobre a faculdade, sonhos, medos, etc. Um mês depois estávamos saindo juntos. Três anos depois eu peço ela em noivado.

   Ela não trabalha. Está procurando emprego, desde que ela ofendeu um "amigo" de trabalho as coisas não foram bem. Coloco meu tênis. "Bom dia amor!". Sempre as mesmas três palavras todo dia, é um ritual. Ela começa a esquentar o café. Coloco o terno. O café ficou pronto, tomo uma pequena porção junto a ela. Ela nunca fala de manhã. Seu software ainda está iniciando, provável que ainda esteja dormindo. Abro o jornal da manhã, ainda acho bonito o costume de ler o jornal, folear as páginas de autores que ninguém se importa lutando para escrever e encontrar notícias todos os dias. Não temos cachorros, nem gatos, nem filhos. Achamos que é por que não somos responsáveis o bastante, que podemos esquece-los ou faltar comida e água, então concordamos em manter o silencio habitual. Finalmente a mensagem chega aos neurônios demorados dela. Ela responde com um simples "bom dia". Sua voz ainda rouca por conta do sono. O sono é um vilão. Eu já fui sonambulo, uma vez eu peguei o cartão de crédito do meu pai e coloquei na torradeira. O que você acha que ele fez? Ou como ele ficou? Tratamos meu sonambulismo diminuindo meu café e me controlando. Sim eu sei, não foi uma decisão esperta, já que não funcionou. Mas eles fingiam que dava certo e das muitas vezes que eu fiz algo não planejado na minha linha de vida como sonambulo, eu só andava pela casa mesmo. Olho para minha futura esposa. Estou contente em me casar com ela, não sigo nenhuma religião mas foi escolha dela. Casar é algo simbólico hoje em dia, como se fosse de praxe se casar. "Ah, vamos casar hoje?". E pronto! Mais uma família surge, mais filhos, mais cachorros, mais dinheiro gasto. A renda que um casamento gere para quem promove a festa dá para alimentar quase mil pessoas, dependendo da fome delas. Tudo é matemática, na escola eu pensava o contrário, que matemática era inútil, mas na verdade o que é inútil é as regras que se aplicam a tal. Tem uma estatística que diz assim: se uma pessoa não encontrar seu par "perfeito" para casar até os 26 anos, então ela não encontrará mas ninguém para casar. Eu concordo. Talvez por que eu vou casar, que diferença faz? O amor nos torna tolos, não há alucinação maior que o amor, não existe droga mais pesada que o simples amor. Há quem mate por amor, fuja por amor e etc. É muito clichê e ainda é 07:00 da manhã.

   Meu carro é um Audi Q3, ganhei quando me formei, há 5 anos. O carro é bom, confortável e tudo mais. Ligo o rádio. Ouço o habitual "Bom dia ouvintes!". As ruas hoje em dia estão muito paralisadas, me lembram um formigueiro, muito tumulto e muitos carros. O que gera um dos lucros mais caros, pela minha estatística, hoje em dia é um carro. Um celular você compra e pronto, coloca crédito e tal, mas não é obrigado. Já um carro é difícil manter, tem a gasolina, a revisão, quase como cuidar de um filho. Estou pensando em me mudar, encontrar um lugar mais calmo, falta 3 anos para eu me aposentar. Sim! Sou novo, porém comecei na empresa cedo, quando meu pai se tornou o dono da empresa eu tinha 15 anos, entrei como menor. Passei por uma batida de carro entre uma esquina movimentada, as formigas já estão em volta, procurando por acidentes e notícias, no fundo eles inventam alguma mentira bem arquitetada que todos iram acreditar fielmente. É assim que funciona, acostume-se. Um prédio alto e coberto por vidros é minha rota, ainda me impressiono como o ramo da arquitetura se desenvolveu com o passar dos anos, quem imaginaria que teríamos vidro e concreto como nosso local de renda? Penso também nas pessoas que trabalham para construir esses prédios, não possuo coragem alguma para subir e ficar no perigo do céu, tudo por dinheiro. Talvez se baseie em um fato de minha infância, quando eu era pequeno meu pai e minha mãe planejaram a habitual viagem de fim de ano. Escolheram um local alto, com uma assustadora vista para o sol poente. Quando chegamos tudo ocorreu bem, mas um dia eu fui me apoiar na janela, observando a vista, e cai montanha abaixo. Minha sorte foi que estava nevando, mesmo assim eu bati em uma pedra e fraturei o braço, foi motivo suficiente para eu ter acrofobia desde então. O medo passa com o longo dos anos e a fobia não, você acha que passou mas ela está ali, espreitando e esperando abrirem-se as cortinas para seu espetáculo. Trabalhar na contabilidade não é fácil, pede muito do seu intelecto e de sua capacidade cognitiva. Tinha vezes que os números me davam dor de cabeça, nas piores vezes eles falavam comigo. O bom da matemática é que se você sabe a regra é só aplicar ela e tudo vai estar resolvido, é como fazer seu café toda manhã, você sabe como fazer, basta fazer! Eu não socializava muito, me trancava na minha sala e resolvia o movimento financeiro da empresa. É chato, se você quer aproveitar a sua vida e se divertir eu o aconselho a não fazer contabilidade e se já fez, sinto muito. Normalmente sempre sobrava pendências para casa, como um dever da escola, como meu pai dizia. Parei. Coloquei as mãos entre meus cabelos, girei na cadeira e o mundo girou comigo, me senti em um liquidificador. Levantei. Preciso de um café, se eu não tomo também fico com dor de cabeça. Cumprimentei meus "colegas", mas eles não me cumprimentaram, estavam chorando, todos eles. Perguntei o que tinha acontecido, não me viram ou ouviram. Vou pra minha sala, uma foto da minha noiva sorri pra mim, seus cabelos ruivos como faíscas de lascas de madeira queimada, seu cheiro de morango colhido de hortas suíças, seu toque único e irreconhecível, seu beijo quente e esperado no final de um dia estressante. Eu a amo, não consigo explicar, simplesmente amo, as pessoas também não explicam o porquê das coisas, só aceitam. É a regra simples e natural, só aceitar.

   Quando meu pai entrou e não me viu, apenas entrou chorando e caiu sobre um banco qualquer dizendo que perdeu o filho e ligando a televisão, eu entrei em choque. Era meu carro que estava naquela batida que eu vi mais cedo, e eu estava dado como morto. Mas...eu estou aqui! Foi a primeira vez que não aceitei algo e gostaria de explicações. Eu gritei e gritei e gritei. A morte não é a vilã, pensei, é a vida, pois a morte não mente pra você e você conhece ela desde seu nascimento, mas a vida é quem planeja tudo e destrói com tudo, colocando a culpa na morte.

   Eu adormeci. Acordei na hora do trabalho.

   O céu. Nossa via láctea possui de 200 a 400 bilhões de estrelas, pontos luminosos jogados por cima de uma tinta preto azulado, também somos pequenos pontos jogados por cima de uma tinta mais colorida, misturando tons de verde e azul...

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⏰ Last updated: Nov 07, 2018 ⏰

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Morto no Tempo.Where stories live. Discover now