Caminhada

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- Um copo grande de refrigerante. Daria meu braço direito por um.

Ele veste uma calça larga, dessas com bolsos laterais, que devem ter mais areia que qualquer outra coisa depois de tanto tempo caminhando no deserto. -Bolsos de calças parecem nunca estar furados quando realmente se precisa-. Puxando-a para cima ele compensa o efeito da gravidade que a atrai para baixo, talvez de forma mais intensa do que nunca, talvez seja apenas sua impressão, talvez seja a minha impressão, talvez a gravidade seja apenas impressão.

O Sol já começa a queimar a pele de suas costas, já que a camisa cobre sua cabeça, a fim de proteger-se de uma insolação ou algo do tipo. Lembra de ter visto num canal da TV a cabo, destes que se começa a ver porque não tem nada melhor e acaba-se hipnotizado pela tela, a assistindo, sem prestar de fato, nenhuma atenção, a não ser talvez durante os intervalos, que são propagandas do próprio canal sobre a próxima atração a ser exibida. Lembro que um homem não vive mais que dois dias sem água... -pensa em voz alta. Que tipo de homem? Um saudável, atleta ou fumante?-pensa em voz baixa.Será um homem, no sentido de gênero ? -pensa em voz alta. Quantos dias uma mulher viveria ?-pensa em voz nula. - Foco! -diz- Tenho que me concentrar em sair daqui. -pensa, confuso, sobre que tom de voz foi usado neste último pensamento. Tirando a água da chuva de dois dias atrás eu não bebi nada. -resmunga, por não ter força para falar.

Demasiadamente cansado, se joga para descer a duna e se lança o ultimato:Se depois da próxima duna só tiver areia... Eu desisto. E é exatamente o que ele pensa, ao subir, também, outras três dunas depois daquela. Cada uma o deixava mais agoniado, mais morto. Se sua boca ainda formasse alguma saliva e se não evaporasse, ele provavelmente não conseguiria engolir, pois respirar já é um esforço descomunal a esta altura. No topo da quarta duna, elevação que ele alcançou gastando a energia - talvez da própria alma - que lhe restava, a paz lhe preencheu ao vislumbrar um oasis na base da duna. Sentiu calma, conforto, segurança, e algo que parecia felicidade, mas só parecia; ele não tinha certeza sobre este último sentimento. Pode ter se confundido com a sensação que precede o desmaio. Até este instante ele nunca havia desmaiado, então não poderia comparar. Enquanto seu consciente se mantinha desmaiado, seu sub consciente resolveu resolver algumas pendências pendentes, como por exemplo, melhorar seu vocabulário e pensar sobre aquela coisa que ele sabe que deveria lembrar por parecer demasiadamente importante. Esta parte sobre lembrar de algo despendeu muito esforço, tempo e empenho. Não lembrou. Não lembrou também que estava tentando lembrar de algo quando recobrou sua consciência. Ainda de olhos fechados, a sensação de refrescância no deserto lhe parece duvidosa, não parece com a refrescância de escovar os dentes com o creme dental mais recente, é diferentemente refrescante do primeiro gole de um refrigerante de boa marca. Pensando bem, estas coisas, não são, tão refrescantes quanto suas propagandas sugerem. Faz muito tempo que não vê uma propaganda, até compraria algo se pudesse. Tem uma nota de baixo valor e duas moedas de valor médio perdido entre um punhado de areia no bolso da calça. Daria para comprar um creme dental, ou duas garrafas pequenas de refrigerante de boa marca, ou ainda três de qualquer marca menor.

Sente frio. Suas extremidades estão geladas, e todo o resto sente frio. Por alguns instantes ele exita abrir os olhos pelo medo de se perceber morto, afinal. Mas é facilmente compreendida ao abrir os olhos e se deleitar com a visão: Copa de alguns coqueiros bloqueando a passagem do sol e emoldurando um céu de azul intenso, sem nuvens, que quase se reflete no verde vivo das folhas.

Então se lembra de também ter audição e ouve: As folhas se batendo suavemente, levadas pelo carinho do vento que sopra por ali, constante. Move seu pé para checar se tem controle sobre seu corpo. Consegue. Ouve som de água se movendo. Agora tem certeza de que a audição funciona, mas questiona as chances de estar numa lagoa no meio do deserto. Irrelevante. É água, de verdade. Ele se senta, se acomoda e acomoda um pouco de água em suas mãos. Olha tão profundamente para o líquido límpido que ignora seu reflexo onde veria sua barba por fazer, realmente ele não estava bem apessoado para uma ocasião especial.

-Não... Sinto... Sede... Não sinto sede?

Ri de forma contida, como se não devesse.

Olha para suas mãos e deixa a água escorrer por elas.

Ri de forma descontraída, como quem ouviu uma boa piada.

Olha um pouco assustado à sua volta.

Ri novamente forma contida, como se a piada fosse preconceituosa.

Fecha os olhos, baixa a cabeça devagar e fica sério. Não há piada.

Ri descontroladamente.

Não se sabe quanto tempo ele ficou lá, mas foi tempo o suficiente pra hidratar seu corpo sem precisar beber um só gole. Ele deita, se deixa cair um pouco confuso e vê frutas nos coqueiros e bananeiras. -Estou salvo! Não vou morrer. Não vou.

Ele levanta, pega uma das frutas no chão, confortavelmente descasca a fruta, se coloca numa pose confiante, dá uma mordida, vira de costas pro Sol, em direção contrária a de onde veio, mastiga calmamente, olha ao horizonte e até onde a vista alcança ele vê o que se espera que se veja nessa situação: nada.

-Não vou morrer, acho.

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