PRAÇA BAÚ

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O corpo sentia-se feito em carvoaria ativa. Aqui, salvo muito engano, não existe termômetro público a marcar a ardência do sol – eu, por exemplo, nunca encontrei; e quiçá ouvi falar. Aliás, nem mesmo é preciso: qualquer andante em Porto Velho, capital de Rondônia, sente o couro esquentado já às sete horas da manhã. Os que vêm do Sul, então, se assemelham a camarões à brasa: tão avermelhados e ressecados que tenho demasiada dó. Já eu, por ventura minha, venho do Rio de Janeiro, capital. Sol e calor, por lá, não me faltaram nunca, ainda mais com meu ex-ofício de pedreiro em laje alta.

Foi por volta do mesmo horário citado, não mais que quinze minutos depois disso, numa praçazinha sem tratamento popularmente conhecida como Praça do Baú, local em que haviam bancos sofridos ao tempo e algumas árvores, uma banca de jornal que jornal algum vendia, na parada da condução que me levaria aos estudos, segunda condução a todos ali, por sinal, já que aqui os trajetos dos ônibus são mais difíceis que prêmio em loto, que conheci aquele senhor: estatura média, barba por fazer, boné promocional vermelho sangue, pele amorenada pela mestiçagem e rugas altas, blusão listrado na vertical faltando dois ou três botões, jeans abatido e chinelo de borracha surrada pé dum e pé doutro. Às mãos o homem carregava coisas: à esquerda um par de sacolas plásticas e, à direita, uma carteira de trabalho; já, ao ombro, a alça pendurava uma bolsa a tira colo. No bolso do blusão, lado esquerdo do peito, estufado feito rosto com caxumba – digo o bolso, pois o peito era murcho, semidesnutrido e pelagem branca –, papéis e mais papéis com passagens bíblicas que religiosos costumam distribuir às ruas.

Como eu não havia chegado antecipado à parada este dia, quarta-feira qualquer de Junho do ano de 2018, já não me restava praticamente uma projeção de sombra a me proteger do bafo febril do solão portovelhense. Antônio não me era estranho: outro dia, perto das onze e meia da noite, indo de um bar ao outro pelo Centro, penso tê-lo visto pelas bandas de um lugar que não me lembro bem o nome; penso, mas não me estava muito certa essa conclusão, já que há tempos venho sofrendo com a memória em baixa, efeito das noites que não durmo. Com o andar penoso, arrastado feito cobra em chão batido, só que mais lento ainda, de corpo em corpo à parada ele se achegava. De onde eu estava, cobri os olhos como quem faz uma cobertura com a palma para que melhor pudesse observá-lo. Por essa altura, sete e vinte e dois segundo o relógio em meu pulso marcava, três ou quatro levas de pessoas já haviam cedido espaço à sombra com a chegada das conduções que lhes interessavam. Recolhi-me ao descanso do sol. Acendi, enfim, o meu segundo cigarro àquela manhã.

Duas coisas são como simpatias de rezadeiras experientes: pedra tacada n'água é razão afundar e chegar o ônibus à parada ao encontro da brasa dum isqueiro à ponta do cigarro virgem. Não foi diferente comigo. Não mais que dois tragos e baforadas afoitas, velozes como carapanãs esfomeados, e encosta o Campus Unir a uns quarenta palmos de distância da cobertura em que eu estava. Forma-se aquela fila enorme, que na verdade não era fila coisa alguma, mas sim uma espécie de funil sem qualquer arranjo, para entrar ao coletivo que rapidamente estaria apinhado. Aproveito para dar mais uns tragos e me livro daquele empurra-empurra diário e sem cortesia de jovens universitários dos mais variados buracos da cidade.

Depois de não sei quantas dezenas de negativas, já poucos sobrando não sendo abordados no local, o velho vem roçando suas sandálias em minha direção.

– Moço, tem um cigarro? – perguntou-me o senhor de olhar cabisbaixo.

Os que me conhecem bem sabem que não menos que duas carteiras de cigarro por mim são esvaziadas diariamente. Juntas, claro, dos efeitos do meu uísque sem gelo ou das outras pingas que me permitem escrever lamúrias.

– Tenho, tenho. – respondi, prontamente, já com o cigarro estirado em direção ao homem. Assim, risquei-lhe o isqueiro, este último ainda jovem e com a chama firme, de modo que Antônio pudesse desfrutar do mesmo prazer que eu.

PRAÇA BAÚWhere stories live. Discover now