Prólogo

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O Tempo de Antes

Vaalbara

130 d.R

Era noite e nada fora do comum acontecia. Pelo menos não até ouvir o barulho de passos apressados e vozes ecoando no corredor e, em seguida, uma forte batida escancarando a porta do meu quarto. Meu corpo tremeu e afundei o rosto no travesseiro para reprimir um grito de susto. Pela carga de energia dissipada no aposento, tive certeza de que minha mãe sabia que eu ainda estava acordada e até pouco tempo vagava pelos corredores do castelo, bisbilhotando os arredores. Teria chutado as cobertas e me ajoelhado a seus pés rogando por perdão se não tivesse ouvido seu tom cordial, sinalizando que o burburinho vinha dela e do Pilar da Aliança, Shinra Valbari. Mantendo a farsa, fiz o possível para ficar imóvel na cama enquanto ouvia à discussão.

— É preciso entender, Vossa Majestade, que Vaalbara nunca presenciou tamanha tragédia. Nem mesmo durante os Tempos de Antes! Isso não pode ser ignorado.

— Não diga tolices! Há anos que se fala dessa profecia e nada ocorre. Nada. Estou começando a duvidar do seu posto de Oráculo. Nem ao menos consegue prever um simples ataque ao reino, que dirá tamanha catástrofe! Já faz séculos desde que essas criaturas pisaram em Vaalbara e desapareceram, por que voltariam agora?

— Mas a profecia... — minha mãe começou, sendo duramente interrompida pela voz de barítono de Shinra:

— Basta, Nadia!

— O caos está próximo, meu senhor, ouça o que digo. Shinra, eu imploro, alerte o seu povo. Alerte cada aldeão, lorde, mulher e criança do perigo que bate à porta. Se souberem seu destino, muitas vidas poderão ser salvas.

— Ou o verdadeiro caos vai se instalar e meu povo cairá na insanidade — o rei rebateu com ferocidade. Por reflexo, minha mãe chiou um pedido de silêncio, temendo me acordar. Mal sabia ela. O Pilar prosseguiu em voz mais baixa. — Não posso apostar tudo em algo tão instável quanto uma profecia.

— Então por que estou aqui, Shinra? — explodiu. — Diga! Se não acredita em minha palavra de Oráculo, por que ainda me mantém aqui?

— O cenário é completamente diferente, Nadia! Um ataque dos Abissais não se compara ao que está me dizendo!

— Só temos uma chance. Precisa mover suas peças, o tempo é curto.

— Não moverei peça alguma, Oráculo.

O silêncio se estendeu por alguns segundos até um riso zombeteiro escapar da boca de minha mãe.

— Zelamos pelos nossos — ironizou o lema da Casa Valbari, no trono há mais de um século, desde o dia que ficou conhecido como o Renascer de Vaalbara, no qual a aliança entre os quatro antigos reinos fora formada.

— Isso está fora do meu alcance, Nadia — o Pilar se explicou com pesar.

Minha mãe permaneceu impassível.

— Este fardo vai cair em suas costas, Shinra. Quando Vaalbara queimar e seu povo se resumir a cinzas, você vai desejar ter seguido o meu conselho. — Fez uma pausa. — Ou estar morto. E disso, pode ter certeza, você não vai escapar.

Nos minutos que se seguiram, somente o sussurro do vento pôde ser ouvido. Era um silêncio pesado e desconfortável que tentava ocultar a aflição e desesperança de ambas as partes. Resignado, Shinra Valbari se foi sem dizer uma só palavra. Assim que o estrondo de madeira com madeira ecoou, minha mãe veio ao meu encontro, envolvendo meu corpo num abraço apertado. Fechei os olhos com força e tentei controlar meus batimentos para parecer que estava adormecida. Senti uma lágrima quente atingir minha bochecha, seguida de outra. Elas pareciam queimar o meu rosto.

— Por favor, que esteja errada — Nadia suplicou desesperadamente num sussurro. — Por favor, que esteja errada.

Tentei inspirar, mas a dor em meu peito era tão forte que ar algum en­trou. Nem um pouco preocupada com a reação negativa que minha mãe poderia ter, girei o corpo e fiquei frente a frente com ela, que arregalou os olhos de surpresa. Levei a mão ao seu rosto, secando uma lágrima que escorria lentamente por sua bochecha. Ela pousou sua mão sobre a minha e a envolveu completamente. Quando encontrei seus olhos cinza na penumbra do quarto, os cantos de sua boca se recurvaram e ela soltou um soluço desolado, apertando-me com força contra seu peito. Minha cabeça subia e descia conforme seus espasmos. Esperei que ela se acalmasse para falar.

— O que está acontecendo, mamãe?

— Você ouviu tudo, não é, pequenina? — Fiz que sim, mesmo sem precisar.

— Eu vou morrer? — perguntei inocentemente. Mamãe engoliu com esforço e fechou os olhos por alguns instantes, procurando forças para se manter firme.

— Um dia todos nós vamos, minha pequena Moira — ela desconversou com dificuldade, passando a mão por toda a extensão de minhas costas.

— Sobre o que você estava falando com o rei? O que são essas criaturas? Por que querem atacar a gente?

Mamãe riu baixinho e taciturnamente, afastando uma mecha castanha de minha testa. Levantou meu queixo e beijou minha bochecha, depois acariciou meu rosto como se nunca mais fosse me ver.

— Lembra das histórias que eu contava quando você era pequena?

— Eu ainda sou pequena.

— Sim, claro que é — concordou com um sorriso triste. — Mas não tanto quanto antes, certo?

— É. Tenho sete anos agora.

— Isso mesmo. Ainda se lembra delas, não é? — Confirmei com um aceno. Mamãe assentiu e suspirou profundamente, ajeitando-se na cama e me convidando a descansar a cabeça no travesseiro.

— Você cantou para mim as canções e contou sobre a mais importante das feiticeiras.

— Sim, mas isso não é tudo. Na verdade, não é nem um grão de areia no meio do deserto. A Vaalbara que você conhece era outra, mas igualmente imersa na desconfiança e no medo. Por anos se viveu em paz, mas a guerra foi inevitável e, com ela, o pandemônio causado por homens e mulheres que estavam perdidos em sua própria escuridão. Então eles vieram...

— Eles quem?

Mamãe se calou, parecendo medir as palavras. O olhar desviou de mim para a sacada do quarto, a mente perdida no luar e no céu de Vaalbara. Após alguns instantes, ela piscou repetidamente, voltando a si, e me observou com ternura.

— Quer entender o que está por trás da formação da Aliança, Moira? — perguntou de repente. — Quer conhecer a verdade que poucos sabem?

Assenti com veemência. Ela novamente desviou o olhar para o céu, pensativa.

— Espero que tenhamos tempo suficiente — murmurou de modo distraído.

Um vento frio adentrou pela janela aberta, arrepiando os pelos do meu braço e fazendo meu corpo inteiro estremecer. Mamãe mal reagiu à súbita mudança de temperatura, alheia ao mundo exterior.

— Por que vai me contar isso agora?

Saindo de seu torpor, ela baixou o olhar para mim.

— Porque o que está por vir depende disso.

Apesar de não entender o que disse, apenas assenti e deixei-a continuar.

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⏰ Last updated: Jan 19, 2019 ⏰

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O Príncipe Herdeiro - Livro 1 de As Crônicas de VaalbaraWhere stories live. Discover now