A primeira coisa que sentiu quando veio à vida, havia sido dor. Por todo o seu corpo, cada extensão de seus músculos, queimando as centenas de suturas que uniam a pele e os membros, percorrendo todo o seu interior recheado de órgãos mortos e preenchidos com estofado. Não deveria estar vivo, jamais deveria ter nascido – se é que poderia chamar aquilo de nascimento – naquele laboratório, ia contra toda a ordem e natureza das coisas, por isso a dor da vida lhe era tão insuportável. Mas a Dra.Rosenstein não dava atenção nem para a ordem ou para a dor alheia, apenas desejou despertar sua criatura.
Seu corpo era humanoide, mas com um alto custo devido às inúmeras cicatrizes que possuía na pele pálida e cinzenta, lembranças do tempo que se assemelhava muito mais a um boneco remendado. A doutora havia lhe dado olhos, que apesar de poder enxergar jamais retornaram a cor viva, sendo de um tom leitoso fantasmagórico; havia lhe dado orelhas com ouvidos aguçados feito os de um morcego; e apesar de não ter um nariz propriamente dito além das coanas, seu faro era astuto como de um sabujo. Mas a Dra.Rosenstein não havia lhe dado uma boca, pois como uma criatura viva feita dos mortos, não precisava se alimentar, e jamais a mulher gostaria que tivesse a liberdade de dizer o que bem queria.
Quando despertou, sobre nada sabia, e a doutora foi sua referência para tudo que conhecia no mundo. Não demorou a compreender seu propósito, proteger ela seja do povo a denunciar seus crimes ou dos próprios experimentos, a Criatura daria a própria vida pela Dra.Rosenstein.
O que sentia pela mulher era confuso em sua mente, uma adoração religiosa, mas também medo de seu olhar gélido e de sua falta de piedade. Por vezes implorava por sua atenção como um filho pede a mãe, outras preferia permanecer longe de seus tapas e chicotes. Quando ela o trancava em sua cela com nada mais que uma cama de palha, passava a noite chorando por ficar sozinho no escuro, mas retornava de bom grado aos braços da mulher assim que a porta era aberta mais uma vez.
Ela poderia castigá-lo e até mesmo o usar de cobaia quantas vezes quisesse, A Criatura jamais revidava, não conseguia diante de sua criadora, deusa e mãe, mesmo com o dobro do tamanho e talvez com mais força que o mais selvagem dos ursos. Não podia lutar com ela que havia lhe tomado toda a sanidade de seu cérebro murcho desperto da escuridão da morte.
Mas por mais que a Criatura se visse completamente controlada pelas garras da mulher, ao menos nunca lhe fora tirado o direito de sonhar. Queria poder sair daquela casa de pedra sombria, ouvir de perto o canto dos pássaros, o riso das crianças e sentir a grama fresca sob seus pés, com o Sol beijando sua pele de fantasma. Queria se ver livre da corrente que tinha no pescoço e poder andar livre pelo mundo ao menos uma vez.
Gostaria de pedir isso a Dra.Rosenstein, mas não apenas não era capaz de falar, como tinha um medo colossal por sua reação. Às vezes sua inocência o dava esperanças, como aquela vez em que ela lhe deixou ficar com uma pelúcia que encontrara no lixo, mas seu lado mais racional também o fazia lembrar das muitas surras que havia levado por ter feito algo de errado.
– Vamos criatura tola, não tenho o dia inteiro! – A doutora lhe deu mais um puxão em sua coleira de ferro, o fazendo dar um passo a mais. Vindo da porta dos fundos ouvia o cantar dos pássaros que tanto adorava. - O que você tem hoje? Venha antes que eu decida te encher de agulhas mais uma vez.
A Criatura não gostava das agulhas, mas queria muito explorar o que havia atrás daquela porta. Uma coragem que não sabia que possuía além dos mandos da Doutora atravessou por sua alma já condenada ao inferno por tão perversa origem. Manteve-se firme com seus mais de dois metros de altura, apontando com o longo braço pálido em direção à saída, os olhos suplicando o que era incapaz de exprimir em voz alta.
– Sair? É isso o que você quer? – A mulher indagou com desdém em seu tom, os óculos parcialmente rachados refletindo a luz da manhã e escondendo por um momento seus olhos cheios de fúria. – Não pode, sequer é capaz de sair sem minha companhia. Pare de se portar como uma criança mimada, não o criei para isso!
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A Criatura
HorrorNão é segredo algum que o brilhantismo da doutora Helga Rosenstein é fruto de uma perversidade sem limites em cada um dos seus macabros experimentos. Criar vida através da morte acabou se tornando um dos maiores feitos de sua carreira, além de amedr...