A Marca

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Fui apedrejado, perseguido e odiado, e por um longo tempo também me odiei. Os perfeitos nem mesmo se atrevem olhar, para a maioria, estar vivo é uma afronta aos deuses, aos bons costumes, mas não nasci assim, e agora é tarde demais para me tirar a vida. Restava me tirar o contato humano, a liberdade, o amor. E assim foi feito.

Nasci na cidade da perfeição, na terra dos seres superiores, onde os defeituosos são condenados ao nascer e os velhos e doentes são sacrificados para o bem maior. Nasci aqui onde o fraco não tem vez. Nasci forte e perfeito, cresci e fui para a guerra, quando retornei já não era tão forte assim, muito menos perfeito.

Meu pai sempre dissera que a guerra deixa marcas, e eu voltei para casa com uma tão visível quanto o horror nos olhos de quem a via, já não era perfeito, mas não tinha idade para ser descartado, era herói de guerra, era o orgulho e ao mesmo tempo o fardo, deveria ter aceitado a morte em batalha e disso sempre soube.

Poderia escolher não retornar para casa, mas em meu coração ainda havia esperança na família e nos entes queridos, mas os líderes os obrigaram a escolher e eu jamais poderia deixa-los morrer, novamente me sacrifiquei.

A marca era amaldiçoada, eu me tornei o fruto proibido na árvore da vida, o pecado no éden, o horror em meio a inocência.

Da cidade da perfeição não poderia sair, pois a perfeição depende do que é visto por outros, e o preconceito é feio. Nas ruas da cidade da perfeição também não poderia ficar, pois já não me encaixava na perfeição.

A lei foi aplicada. Nada imperfeito pertence a cidade. Fui enviado para o interior, para os frios, fétidos e sujos calabouços.

"Todo o interior da cidade, tudo o que o sol não toca é seu, aqui você pode andar em liberdade."

Minha gigante prisão, falsa liberdade, tão grande que te seduz e te engana, mas ninguém disse o quanto é frio onde o sol não toca, o quanto a imensidão interior é solitária, e a lembrança do calor na pele e do toque suave de outro ser te apunhala nas noites frias.

No escuro permaneci, até que o homem caiu em esquecimento, e a criatura das trevas surgiu, algo maligno que habitava nas sombras, abaixo de todos, longe do sol. De perfeito a monstro, de herói a lenda de terror contada na beira da cama para fazer criança dormir.

"Queime o monstro" foi o que os ouvi dizerem. "Cacem o monstro e queimem o monstro, protejam a cidade, matem o monstro."

Então fugi. Corri em direção ao desconhecido na esperança de viver os poucos anos que me restavam.


Longe da Cidade da Perfeição estou. Aqui fora, as imperfeições estão bem à vista, onde todos sabem onde as encontrar, aqui fora monstros são mais fortes apenas por não se esconderem nas sombras, apenas por aceitarem o que são. Aqui as perfeições são encontradas dia após dia quando o sol nasce e toca nossas maldições.

A MarcaWhere stories live. Discover now