Pele de Asno

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ERA UMA VEZ o rei mais poderoso que já houve na terra. Amável na paz, terrível na guerra, não havia outro que se comparasse a ele. Seus vizinhos o temiam, seus súditos eram felizes. Em seu reino, à sombra de suas vitórias, as virtudes e as belas-artes por toda parte floresciam. A esposa que escolhera, sua fiel companheira, era tão encantadora e tão bela, de índole tão serena e tão doce, que ser o esposo dela o fazia ainda mais feliz do que ser rei. Do terno e casto enlace desse casal, que foi pleno de afeição e contentamento, nasceu uma menina. Eram tantas e tais as suas virtudes que o rei e a rainha logo se consolaram por não ter mais filhos.

No vasto e rico palácio desse rei, tudo era suntuoso. Por toda parte formigava uma profusão de cortesãos e camareiros. Os estábulos abrigavam cavalos grandes e pequenos de toda sorte, cobertos com ricos arreios ornados de ouro e bordados. Mas o que surpreendia a todos que neles entravam era que, no lugar de mais destaque, um grande asno exibia suas enormes orelhas. Essa esquisitice pode surpreender, mas, uma vez conhecendo as virtudes superlativas do animal, já ninguém pensava que a honra era excessiva. Pois esse asno, a natureza o formara de tal maneira e tão imaculado, que, em vez de esterco, produzia belos escudos e luíses de ouro, que rutilavam ao sol e que, toda manhã, ao seu despertar, em sua baia iam recolher.

Ora, o céu, que por vezes se cansa de deixar as pessoas só contentes, sempre à sua felicidade mistura alguma desgraça, como a chuva ao bom tempo, permitiu que uma doença grave assaltasse de repente a saúde da rainha. Buscou-se socorro em toda parte, mas nem os doutores com seu grego, nem os charlatães reputados, nem eles todos juntos, conseguiram extinguir o incêndio que a febre, cada vez mais alta, acendia.

Chegada à sua última hora, a rainha disse ao rei seu esposo: "Permita que antes de morrer eu lhe faça um pedido: se acaso desejar casar novamente quando eu já não estiver aqui..."

"Ah", disse o rei, "essas inquietações são vãs, eu jamais pensaria nisso, fique tranquila."

"Eu acredito", respondeu a rainha. "Seu amor ardoroso é prova disso. Para ter plena certeza, porém, quero seu juramento de que não se casará. Eu o atenuo, contudo, com essa ressalva: se encontrar uma mulher mais bela, mais perfeita e mais sábia do que eu, aí sim estará livre para empenhar sua palavra e desposá-la."

Sua confiança em seus encantos era tal que a fazia tomar esse compromisso como uma promessa do rei de jamais se casar. Assim o rei jurou, os olhos banhados de lágrimas, tudo que a rainha desejou.

Ela morreu em seus braços e jamais um marido se entregou a tamanho desespero. Ao ouvi-lo soluçar dia e noite, pensou-se que seu luto não seria duradouro, e que ele chorava seu amor perdido como um homem que deseja liquidar o assunto o quanto antes.

A impressão não foi equivocada. Ao cabo de alguns meses o rei se dispôs a fazer uma nova escolha. Mas não era coisa fácil, era preciso manter o juramento, e a nova noiva devia ter mais prendas e graça que aquela recentemente sepultada.

Nem na corte, fértil em belezas, nem no campo, nem na cidade, nem nos reinos das redondezas foi possível encontrar mulher assim. Somente a infanta era mais bela, e possuía certas sutis seduções de que a defunta carecera. O rei percebeu isso. E, inflamado por um amor extremo, acabou por meter na cabeça a ideia louca de que devia se casar com a filha. Encontrou até um casuísta que julgou a pretensão procedente. Mas a princesa, desolada de ouvir falar em tal amor, consumia-se noite e dia a lamentar e chorar.

Com a alma transbordando de dor, ela foi à procura da sua madrinha. Esta morava longe, numa gruta solitária ricamente ornada de nácar e coral. Era uma fada admirável, cuja arte ninguém igualava. (Não preciso dizer o que era uma fada naqueles tempos de antanho – isso com certeza sua ama contou para você desde os seus mais verdes anos.)

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