ANOITECER (capítulo único)

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FOI AINDA PERTO DO INVERNO que me ocorreu de observar. Naquele dia, o Sol ardia alegre sobre o chão de pedra, aquecendo o dia de muitos viajantes que passavam e dormiam naquela cidade alta. Nossa pele suspirava com o vento que nos refrescava agradavelmente. Já nem fazia mais tanto calor; estava confortável.

Mas chegou o tempo em que o Tempo aplicou seu sonífero ao Sol. O grande astro rei, assistido por uma grande plateia, aproximou-se vagarosamente de seu leito no horizonte. Uma manta branca o enrolou devagar para acariciar seu sono e ele nos abençoou com seu último sorriso amarelo do dia.

Os habitantes do dia assistiram comovidos ao enterro de seu rei na lonjura, atrás das colinas. E seus raios ofuscantes já se viam tão adormecidos que nós, ao muito bem o olharmos, não sentíamos dor alguma. Suas damas de honra, gueixas vestidas de amarelo, rosa e escarlate, acompanharam o majestoso até seu quarto e fecharam a porta.

Logo após, já vieram os grandes navios da imperatriz anunciar sua chegada. Eram grandes navios azuis escuros que chegaram navegando por um mar comprido e liso, sem ondas, nublando parte do céu. Ao vermos eles lá no alto, soubemos da chegada dA Grande. Os moradores do dia se retiraram das poltronas e desceram a montanha; alguns foram dormir. Eu, criatura da noite, fui assistir, e assim honrar, a chegada de minha rainha.

Sentado à beira de um pequeno penhasco, senti o vento frio que o balançar da barra de seu vestido causava. Eu estava muito ansioso, pois A Grande estava chegando; e eu soube que, em sua presença, eu teria paz.

Vi o céu escurecer. Sua cor azul se mortificou e acompanhou o tom de crepúsculo que os soldados da Noite trouxeram ao firmamento. Esses soldados esfumaçados e leves cavalgaram no vento e trouxeram o império noturno. E em apenas uma hora A Cálida conquistou tudo aquilo que ao dia pertencia.

Depois da passagem de seus soldados, observei que tudo o que era claro e tudo o que era cor estava dormindo em derredor e na vastidão do alcance de meu olhar amoroso. Ao longe, observei que A Temida já começava a descer seus mantos pouco a pouco sobre a terra; suas cortinas transparentes de trevas começaram a esconder de meus olhos pedaços da paisagem verde que eu podia ver; e logo eram tantas cortinas de trevas que, por mais que transparentes fossem, não víamos mais nada na distância.

Os insetos da noite começaram a cantar para receber a chegada de sua rainha e o silêncio lhe fez reverência. Os tímidos bruxos sombrios começaram a sair de baixo das árvores, onde habitavam. Mais tarde se confundiriam com o escuro e poderiam andar à vontade pela cidade. Árvores aplaudiam o vento gelado e a grama fazia carinho em sua barriga, massagem em seus pés.

Eu vi A Nigérrima chegando por cima das colinas, arrastando seu vestido preto de tule e cetim. E seu vestido e sua capa eram tão frondosos e armados que amaciavam quase tudo o que se via em minha frente, conforme ela chegava. Em sua coroa brilhavam joias das mais caras e mais brilhantes, tais que nunca poderiam ser trabalhadas por mãos de homem nenhum.

Ela é completamente tocável e envolvedora, mas nenhuma força barrava seu avanço. Vinha paciente, tranquila, mas seu passo era firme no chão. Logo era cobriu a todos nós e enfim pudemos dizer que era noite.

Ó Gélida, põe sua mão sobre a cabeça de todos nós. A Noite é lugar de retomar as energias para nós, noturnos. É lugar de intravisão, de reflexão e contato consigo. O que está longe não nos interessa mais, pois ela não nos deixa ver. O que nos interessa somos nós. Então sim, a Noite nos abraça e vem para cuidar de nossas coisas mais íntimas. Nos convida a tirarmos o olhar de tudo o que o dia nos dá e olhar para dentro de nós mesmos, para o que está perto.

E A Sombria é lar de emoções. Olhando para a vastidão de preto que há a minha frente senti o vento gelado bater na parede do penhasco no qual me sentava, com os pés balançando, e percebi que aqueles arvoredos já não eram bosque, e sim um mar de correntes geladas, que batiam na pedra e faziam barulho farfalhante.

Nas posses da Noite, todo bosque é mar. O elemento Água inunda tudo: o frio, o úmido, a emoção. E meu coração de pedra se encheu de amor pela minha Grande e meu corpo vibrou de felicidade por estar em casa de novo, no meio do escuro.

A Lua, filha da Noite, me fortaleceu meus poderes de realização, de magia, de adivinhação, e me trouxe de volta meu vigor juvenil. Passeei pelo império de minha Imperatriz e não me cansei nem um pouco, pois eu estava bem. Andei por aquela cidade de pedra inteira e não quis dormir, e nem um bocejo saiu de minha boca, pois aquele era o meu tempo.

Eu vi pessoas se divertindo sob os domínios da escuridão, explorando aquele vale de que a rotina lhes afastava. Numa roda, pessoas vestidas de preto e branco clamavam pelos poderes da Lua. Numa encruzilhada, um homem deixou uma garrafa de champagne e uma dama a recebeu; não levou embora, só recebeu. Uniões amorosas se acalentaram no império de resfriamento e amizades eram celebradas ao som de música e na companhia de bebida e comida.

Aquela era uma noite especial. A Gélida trouxe sobre nós uma gigantesca onda e encheu o céu de fumaça com uma só ordem. As nuvens gritaram e jogaram sobre a terra lanças luminosas como aviso. E então começou a chover fortemente.

As águas lavaram toda a cidade, banharam muitos andantes, muitos sem um agasalho. E o frio se completou. Assim, meu ritual também foi completo. Depois dessas experiências, eu estava com minhas energias renovadas para viver o resto do ano.

Noite, que nos traz as trevas em que moramos, desejo que seu império perdure por longas horas. Eu permearei seu escuro satisfeito por ser uma criatura das sombras. Você será minha fonte de força. E quando for amanhecer, antes mesmo que apareça a primeira crista vermelha ao leste, eu irei dormir. Pois não quero ver o império noturno acabar. Meu coração se acelera nervoso só de pensar que o Sol possa me tocar. Não quero ver o escuro ser espantado pela luz. Então a luz não me encontrará acordado quando chegar.

ANOITECERWhere stories live. Discover now