Despedida

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As coisas estão bem difíceis. No que diz respeito ao ser produtivo, ao homem moderno, daquele carente de sentido, abandonado pelos deuses, falho em minha missão de "ser alguém", de assumir uma identidade; também em ser notado. Como podem todos, tão voluntariamente, afirmar como afirmam, vulgarmente fazer concessões, das formas mais imbecis, e julgar o outro, superestimando seu próprio valor? A vida sem seus exageros é desesperadora... Isto compreendo. O que incomoda é sentir-me sufocado, num meio que não apenas as pessoas abandonaram a sensatez como ainda me pressionam, com suas diversas formas de deveres, preconceitos, projeções, fracassos, e maldade. Já provei do sabor da vitória, e não falo apenas por ter me desatado desta, mas por ter me desconectado de todas as instituições a ponto de não mais conseguir me conectar novamente, mesmo tentando... Mas, isto não é ruim por fim. Não importa. Não importa a cor da bandeira estampada em nossos uniformes, nem mesmo quais ilusões te conduzem. O inefável se aproxima, e a vida escorre de nossas mãos a cada pôr do sol, cada orgasmo, banquete ou página. Covardes, para que tantas filiações, igrejas, carros, matrimônios, filhos...? O homem moderno não consegue mais suportar a si mesmo? Abandonado pelo tempo, não sei mais quem sou. Nunca soube, para o bem da verdade. Tive por um lapso de tempo uma energia que me atravessou e me fez percorrer os mais diversos caminhos e competições em meu meio, me fazendo acreditar que haveria conforto após esta tal vitória tão burguesa. Mergulhei nesse universo e fui inclusive quem não era. Não por ter causado prejuízo a outrem, mas por ter mirado alto, e orquestrado um cenário onde era apresentado como um "empresário", a figura do dominante, que investe e realiza sonhos, daquele que mais está perdido, por apenas saber reconhecer uma única língua, que lhes ainda é manipulada: o dinheiro. Não faço mais parte deste jogo tão medíocre. Não há mais nenhum dia sem suplício, não há nenhum sabor nos dias, mas apenas cobranças de outra época. E assim se passou pouco mais de uma década de minha vida, ou minha vida, quem me tornei. A empresa, esta missão de vida disfarçada de cruz, com o peso desta, o vasto universo dos palpites, os desencadeamentos das fórmulas e sua utilidade que a tantos fascinam, e que a mim mesmo encantaram, o clitóris, a poesia, tudo isso ficou pra trás. Sinto-os distantes, os reconheço, mas não tenho vontade de tocá-los. Por algumas vezes "ingressei em uma universidade". Tentei de várias áreas, falei seus idiomas característicos, pensei e agi como eles, fiz suas provas, em algumas delas até me sobressaindo, mas a nada me prendi. Do engenheiro especialista ao empreendedor, do matemático ao professor, do doutrinador ao defensor público, do filósofo ao cínico, do impostor ao escritor, que me resta hoje senão pacotes de cigarro e embriaguez, em meio a livros que não mais abrirei, a e-mails que não quero responder, ao dinheiro que não quero ganhar, a jogos que não mais me entretêm e coxas que não mais me excitam? Autoconscientização. Sabermos do efêmero da vida, dos odores disfarçados por perfumes caros, da vacuidade de nossas ações, do corpo em decomposição, faz diferença. Missão distante, uma vez que cada vez mais a tecnologia aliada ao capital faz apenas perpetuar a Ilusão....

Raphael, livre-se desta ilusão de ser escritor.

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⏰ Last updated: Nov 28, 2019 ⏰

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