O Sono dos Justos

43 4 17
                                    



"Eu realmente desejo que você não me odeie quando ouvir o que eu tenho a dizer. Se bem que, honestamente, não acho que você consiga me odiar mais do que eu mesma me odeio."

Mesmo antes de dizer as palavras elas já lhe pareceram saídas da boca de uma adolescente desengonçada. Por estranho que parecesse, dadas as circunstâncias caóticas em que se encontrava, aquilo era o mais próximo que ela conseguia chegar de descrever como estava se sentindo. Parecia uma criança nervosa, apanhada em uma travessura, apostando na piedade e no drama para tentar se desculpar por um agravo, ainda que soubesse – em certos casos, não havia drama capaz de reparar um estrago tão grande.

Respirou fundo. O ar contaminado fedia a algo parecido com enxofre. Olhou para as próprias mãos, cobertas por luvas que há muito não eram brancas e cheias de pequenos furos e cortes. A perna esquerda havia parado de doer por culpa dos anestésicos, mas o estilhaço pontiagudo que a fazia latejar lhe presentearia com uma bela contaminação se não fosse logo removido, ou com uma hemorragia fatal se fosse. Dos males o mais tardio. Melhor deixar a perna como estava. Ao redor, a cabine de lançamento ainda acumulava os destroços flutuantes da explosão que danificara permanentemente o sistema de propulsão principal da enorme nave de batalha Pegasus3, e apenas o breu sem qualquer estrela, planeta ou ponto de referência à vista ocupava a enorme janela de cristal reforçado ao fundo da sala.

Nada mais natural, uma vez que a única entidade presente no horizonte era um buraco negro.

Verificou mais uma vez se os sistemas de seu veículo de exploração, atracado à Pegasus3, estavam em ordem. Piloto automático, combustível, motor quântico de dobra. Refez os cálculos de novo. Sua nave, a Caronte, ainda estava alinhada – e se o sinal estava chegando até ali era porque ainda havia chance de fuga. Desde que decolasse dentro da próxima hora, teria propulsão o suficiente para vencer a gravidade monstruosa que tentava puxá-la para o horizonte de eventos. A carga estaria segura.

Voltou à mesa de controle, e fitou o gravador de vídeo desligado. Refazer os cálculos só levara dois minutos. Ela ainda teria outros cinquenta e oito para dizer o que quisesse e então tomar uma decisão. Ironia, depois de tudo o que passara para chegar ali, que aquela fosse a parte mais difícil.

A nave Pegasus3 era imensa, e já há vinte anos, estava em rota irreversível de encontro a um buraco negro. Moribunda de um combate muito mais antigo, estava cheia de buracos, falhas de sistema e vazamentos. A maioria dos víveres e armas havia sido saqueada, ou perdida para as trevas siderais. Era um cadáver em decomposição se esfacelando no cosmo.

Por essa razão, Marjore não achou que seria tão complicado transitar pela nave e encontrar o que procurava. Veterana de muitas explorações, resgatava naves agonizantes de infernos como aquele com a mesma facilidade que manobrava entre

chuvas de meteoritos ou que encontrava o caminho para o banheiro ainda com os olhos fechados depois de uma noite de sono. Não haveria ninguém para atrapalhá-la – mas o inverso também era válido: em caso de um acidente, não haveria quem pudesse socorrê- la.

E houve acidentes. Por mais que o caminho estivesse praticamente idêntico ao que visitara da última vez que pusera os pés ali, alguns obstáculos foram difíceis de vencer sem ajuda. A solidão custou-lhe alguns furos e cortes no traje de proteção, meio tanque de oxigênio, um estilhaço de metal enfiado na perna quase até o osso e três das quatro ampolas de anestésico que trouxera. Ninguém que a conhecesse diria que logo ela iria tão longe por causa de uma carga, especialmente uma carga humana.

Tal suposição não era injustificada. Marjore, ou Capitã Marjore, como passou a ser chamada desde que adquirira a própria nave, não era conhecida por sua simpatia, seu apreço pela vida ou pela forma como valorizava as pessoas com quem trabalhava. Era dura, e experimentada demais na escuridão e no vazio interestelar para se deixar afetar por alguns meses ou mesmo anos de solidão e isolamento. Seus imediatos se mantinham leais porque ela pagava fatias gordas dos espólios conquistados nos serviços que pegava, e porque entendia muito de exploração, reaquisição de valores e condutas de patrulha.

O Sono dos JustosWhere stories live. Discover now