Hipótese número 1

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Se eu fosse escrever essa história, como se fosse um romance de Jorge Amado ou Gabriel Garcia Márquez, seria o seguinte:

Algo naqueles últimos dias acendeu uma chama mútua, verde, gélida, de preocupação. Ambos passavam pelos momentos mais difíceis de suas vidas, e não estavam sabendo lidar com isso. Talvez ali se principiasse o processo de maturação, tão solicitado em orações e rezas.

Ela, pela primeira vez, necessitava de auxílio, e estava disposta a descer do pedestal da autossuficiência e da pretensão de maturidade, em busca de aprender algo com o outro, e organizar em conjunto um melhor plano de caminhada. Depois de anos se fechando e decidindo sozinha o que fazer, porque finalmente não tinha mais o pai para obedecer. Ele, pela primeira vez sentindo a necessidade de estar sozinho e olhar para si, depois de uma longa jornada se importando com o outro, se doando para o outro, como um servente, um acessório, um adereço.

Se decidiram, em segredo e separadamente, na mesma semana. Ela, no fluxo intuitivo, disse tudo o que queria por impulso, como um vômito. Um vulcão explodindo, sozinho no horizonte, e arrasando tudo o que fosse vivo à sua volta. Ele, se preparando por dias e dias, buscando amparo externo para ter certeza, mas com a certeza dentro de si que deveria fazer tudo com muita cautela e beleza, falseando, sem saber, uma medida importante. Como um médico, que diz que a injeção não vai doer, fazendo promessas e palhaçadas para enganar o paciente sobre a dor, que vai e deve ser sentida.

Ambos agiram em desbalanço e escolheram medidas extremas. Como imãs, quando postos em faces contrárias, quando por tanto tempo foram imãs postos face-a-face. Após o ocorrido, as coisas se inverteram. Ela, que buscava união e ajuda, teve que se contentar com sua habitual solitude, desta vez transformada em solidão. A ajuda que buscava, encontrou dos amigos, e aproveitou esse tempo de baixa no exército de si mesma para se esconder por trás das barricadas e olhar para trás. Buscar alternativas nesse cenário de guerra, e observar quem ali estava, do seu lado. Foi um momento de ouvir conselhos, pedir colo, apreciar bons momentos com amigos e familiares. Viajou, se despiu da pele anterior.

Ele, que precisava desse momento sozinho, quando se viu de fato sozinho e no escuro, após agir vazio de sentimentos, mas cheio do ar implacável e inclemente do dever e da razão, sentiu uma profunda euforia que parecia ter gosto de elixir dos deuses, que tinha forma de liberdade. Mas que, na verdade, escondia em seu líquido algo podre e parado. Esse algo podre e parado era a gota do veneno que escapa da presa da serpente que mordisca o próprio rabo. As sensações, lugares e pessoas eram outros, mas ele não se dava conta, ainda, de que havia caído no mesmo abismo do qual tinha acabado de escalar.

Ela se inflou de intuição, de conselhos e amigos, terapeuta, oráculos. Mas alimentava uma vã esperança de que ele ia pelo mesmo caminho de autocuidado e preservação. Que a destruição do belo tinha em si certa beleza e utilidade, que era um mal justificado por um bem maior: o crescimento de ambos. Quando percebeu que o outro se embriagava nessa busca desesperada de si no outro, nesse autoafirmar-se fora de si, inflou de raiva e decepção. Afinal, via potencial muito grande no futuro de alguém que desdenhou do próprio destino por não saber lidar com o próprio espelho.

Ele festejava numa superfície que aparentava rigidez e fortaleza, mas era, em realidade, uma capa, uma fina camada exposta e frágil, que escondia em suas profundezas um grande iceberg de sentimentos outros congelados. Sorria com desespero, com sede de viver. Com a vontade de acreditar em si mesmo, quando na realidade a última coisa que pensava - ou mesmo sentia e não sabia identificar racionalmente - era na mentira que estava criando para si. Mas pensava ser tarde voltar atrás, se desculpar, desatar laços e resolver nós que ficaram no passado. Então, desesperadamente rezava e dizia a si mesmo em meio a suspiros "vai ficar tudo bem. Estou fazendo certo dessa vez, foi esse caminho que escolhi e não vou novamente abandonar o barco, com tantos tripulantes nesse navio. Retornar ao ponto anterior seria negligenciar tudo o que conquistei agora".

 Retornar ao ponto anterior seria negligenciar tudo o que conquistei agora"

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A raiva a cegava. A mágoa enchia de nuvens negras sua cabeça. A dúvida sobre si mesma e seus sentimentos a angustiava, e gritava em pesadelos, a socava em meditações, a abraçava em seus choros urrados. Já não era aquela que dera a volta por cima, deixando o passado para trás. Porque o passado era dela, o passado era ela. A nuvem negra lhe trazia de volta o tormento, a tormenta, a tempestade. Tempestade iniciada pelo sopro do vento que era ele. Que fugiu do tsunami que era ela. O monstro alimentado fora deixado à própria sorte, e se alimentava de si mesmo. Que se comia e se vomitava, regurgitava e recomia, tal qual uma serpente mastigando a própria cauda. Era uma dança anfíbia de venenos mal curados aplicados em doses antiofídicas, até mesmo a dor era um invento, uma ilusão causada pela não materialização daquilo que não foi.

Faltava verdade em todo o caso, porque ele nem havia chegado na matéria. Tudo o que foi sentido, tudo o que foi pensado, tudo o que foi desejado não foi dito, não foi praticado, contrariando o equilíbrio alquímico quaternário. A busca dupla pela quintessêcia estava em todos os lugares, menos onde ambos deveriam olhar. Ele, materializando o que jamais sentiu, pensou ou desejou, gastando o elemento essencial em outra receita, que, de tão fraca e falsa, tinha seus dias contados. Ela, sabendo da falta desse elemento, e onde deveria aplicá-lo, fugia de si mesma e de suas possibilidades e potencialidades artísticas, jorrando sempre os mesmos elementos nesse bolo já saturado dos mesmos elixires. Ela também fugia, vivendo uma overdose de preocupações e desesperos e angústias. Procrastinando a própria cura: enfrentar as próprias criações, parir filhos dessa tragédia anunciada como forma de expelir todo o mau gosto, toda a água parada, chover todo o cumulus que se adensava nimbus, num limbo que havia se tornado sua vida, por isolamento.

O retorno, inevitável, aconteceria. Ambos foram postos de castigo pelo Tempo, Deus de todas as coisas humanas. Foram aprisionados em seus quartinhos, em suas ilusões, como Sísifos mal criados a rolar suas pesadas pedras todas as manhãs, até o entardecer. Para cair, humilhados, todas as noites, lembrando-se de seus destinos mal traçados, que nesse intervalo, tentavam corrigir os erros meninos dos dois. O castigo era desígnio do pai que os dois não tiveram como humanos, e lhes foi apresentado um divino. Desse desencontro - a prisão na liberdade e a liberdade em clausura - nasceria, talvez, o discernimento de tratar a chance seguinte com hombridade e coragem.


Sem fim, nem começoWhere stories live. Discover now