você, eu & as estrelas de grafite

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De Kunst Van Het Leven (holandês)
"a arte da vida"

"penso que não há nada mais artístico
do que amar verdadeiramente as pessoas."
— v. van gogh

Você beija meus cabelos quando me aninho em seu ombro. Seu pescoço tem um cheiro tão bom. Sabonete, colônia e girassóis. Estamos sentados no campo atrás da escola, pernas esparramadas pela grama e antebraços pálidos à mostra, esperando até que o Sol mergulhe horizonte adentro. Só nós dois.

Rabiscos, rabiscos, rabiscos. Seus olhos cor de grafite não desgrudam da caderneta nem por um segundo, serpenteando os lápis para cima e para baixo e arrastando linhas bifurcadas em rodopios.

Está lindo, o desenho. Laranjas e amarelos e vermelhos deitados em um campo azul, sombras desaguando das colinas. As luzes do crepúsculo refletem no descampado, e você captura cada uma delas com a ponta dos dedos, soprando-as no papel.

O cenário é exatamente igual a você: possui nuances, camadas de personalidade que se enfileiram e sentimentos demais para um só coração. Na sua cabeça tagarela, há amarelo pingando entre as arestas das rachaduras, intoxicando as demais tonalidades uma por uma. A cor está em cada pedaço da sua galáxia, cada curvatura das nuvens e cada ondulação maculada sobre a paisagem. É bonito de ver, mas deixa um sabor amargo no céu da boca.

Ninguém mais entenderia. Você sabe disso, não sabe? A humanidade ainda não está pronta para aceitar sua arte, Hyunjin hyung, por isso que você esconde as telas embaixo da cama após tê-las pintado com os próprios ossos. Talvez eu seja o único com o privilégio de admirar seus traços tortuosos de impressionismo expressionista durante as próximas décadas.

Tudo bem, eu entendo. Sei que não pertencemos a este mundo. Sei que nenhuma outra alma vagante daria a mínima para os cigarros que carcomem seus pulmões pouco a pouco. Nem para os gritos atormentados, às quatro da manhã, quando você cai de joelhos no piso frio, implorando para que as vozes da sua cabeça evaporem. Acho que minhas mãos de papel são as únicas capazes de estancar sua estabilidade frágil, impedindo-a de escorregar entre as falanges e despencar abismo abaixo.

É por isso que cuido de você. E eu adoro cuidar de você. Adoro todas as suas peculiaridades e esquisitices assim como você adora as minhas.

Enquanto colorimos a podridão do mundo com gizes de cera, tintas a óleo e perseverança, reparo em um detalhe em específico. Nossa arte não está nos pincéis lambuzados de um ateliê cubicular, nem em esculturas ou livros ou museus poeirentos. Pelo contrário. Ela é parte vital de nossos corpos. Ela se esgueira sob nossas peles e faz o sangue ser bombeado através das veias e artérias feito gasolina.

É isso, Hyunjin hyung. A arte submerge-nos o tempo todo: quando você furou as orelhas sem que seus pais soubessem; quando me perco em seus olhos de grafite e beijo suas lágrimas geladas; quando nossos corpos estão prestes a se fundir num só durante as madrugadas em claro, seu hálito quente entre minhas coxas e nossos sons engasgados na garganta para guardar cada toque em segredo. Somos a definição de arte, Hyunjin hyung. A essência dela está enroscada em nossas entranhas.

Não se preocupe. Toda vez que as vozes voltarem, eu vou estar bem aqui para lembrá-lo de que os girassóis, cedo ou tarde, voltarão a desabrochar. E então vamos passar as tardes rabiscando atrás da escola e correndo pelo descampado com meu peito colado em suas costas largas e meus braços se embolando sob seu queixo enquanto você me carrega na garupa. Vamos tragar as estrelas de grafite doces e segurá-las em nossos pulmões fétidos até descobrirmos o sentido da vida.

E seremos só você e eu, ao passo que todo o amarelo da galáxia enferruja. Vamos esperar, com os dedos entrelaçados, o Sol mergulhar no horizonte e a profusão de amargura das carrancas alheias esfarelar, deslizando por entre as brechas da nossa juventude trágica tão suavemente quanto a própria tinta.

Tão imprevisível quanto nossos próprios destinos.

Tão perfeitamente imperfeita quanto nossa arte.

Tão insana quanto o próprio amor.

— Hyunjin hyung...

— Hm?

— Acho que eu te amo.

⋆⋆⋆

Vincent Willem van Gogh
foi um pintor holandês conhecido por seu temperamento difícil e possíveis transtornos psiquiátricos, sendo uma das figuras mais famosas e influentes da história da arte ocidental, além de um dos meus pintores favoritos.

美術; de kunst van het leven | hyuninDonde viven las historias. Descúbrelo ahora