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Estas alegrias violentas têm fins violentos
Falecendo no triunfo, como fogo e pólvora
Que num beijo se consomem.

- William Shakespeare

❄ ❄ ❄

Eu não acreditava no tamanho de meu azar. 

Ficar presa com um sociopata idiota não era o que eu podia chamar de melhor forma de se aproveitar o verão. Se é que estava tendo algum verão mesmo. Depois da queda de bombas atômicas em toda a sua superfície, a Terra havia mudado drasticamente e no período de quase cem anos tivemos que viver em uma estação espacial que era a junção de várias estações menores de países que conseguiram escapar de um planeta moribundo. Então, viver em uma espaçonave no meio do nada com pessoas que não curto não era uma tarefa difícil para mim. Porém, isso foi antes de ficar completamente só com John Murphy.

Bufei, ainda ocupada com metade do meu corpo enfiado embaixo de um painel de controle. Eu estava atarefada a semana toda desde uma chuva ridícula de meteoritos que atingiram as partes mais frágeis da nave, que vamos deixar bem claro, não era das mais novas e brilhantes que já vi. Suor escorria por meu rosto, justamente pelo esforço de estar com os braços erguidos acima da cabeça por pelo menos uma hora mexendo em fios e circuitos. Uma conexão errada e tudo deixaria de funcionar em uma chuva de faíscas.

- Já terminou aí embaixo? - ouvi o próprio dono de minha falta de paciência perguntar.

Segurei no painel acima de mim e impulsionei meu corpo para fora. Sentei-me e enxuguei o suor em minha testa com as costas da mão.

Murphy estava sentado à poucos metros de mim em uma das cadeiras de controle, rolando uma bola de futebol distraidamente entre as botas de couro pretas. Ele vestia a mesma combinação de roupas desgastadas de todos os sobreviventes da Arca; jeans gastos nos joelhos pelo uso excessivo e uma camisa que antes fora preta, mas agora estava de um cinza desbotado e furada em alguns pontos. Ele era um rapaz bonito se considerrasse tirar a personalidade que era a pior parte nele.

- Você gostaria de fazer o trabalho por mim? - resmunguei, ficando de pé com dificuldade por causa da prótese que ia desde a coxa esquerda até um pouco abaixo do joelho - Porque eu adoraria ter algum descanso disso aqui.

Ele ergueu os olhos azuis como gelo para minha perna. Uma pontada de culpa cruzou seu olhar. Ela sempre estava lá, mas Murphy a disfarçou rapidamente.

- Eu até ajudaria, Ray - sorriu ladino - Mas eu não tenho nenhuma habilidade em mecânica como você.

Revirei os olhos e peguei o cantil vazio acima do painel.

- Então seja útil e pegue um pouco de água para mim - e joguei o objeto em sua direção.

Ele revirou os olhos azuis, mas não contestou meu pedido.

Tivemos um caminho muito longo até aqui, cheio de percalços e lutas. Principalmente de nossa parte. Porém, com o tempo aprendi a aceitar sua natureza passivo-agressiva e eu me tornei mais compreensiva, mas isso não significava que não brigávamos o tempo todo. Murphy e eu éramos opostos de uma moeda que talvez nunca se encaixa-se.

Acho que com o passar do anos nos tornamos amigos. Se é que eu podia chamar aquilo de amizade.

Minutos mais tarde ele voltou com o cantil cheio e dois pacotes daquela comida espacial nojenta, porém, nutritiva. Ele a jogou na minha direção e eu a peguei no ar. Também devolveu meu cantil, mas não antes de dar uma grande golada nele.

O encarei enviesado.

- Água roubada tem um sabor melhor - deu de ombros.

Revirei os olhos e bebi o conteúdo da garrafa e comi um pouco daquela gororoba, porque Murphy pegaria no meu pé para que eu me alimentasse corretamente. Tive que admitir que eu era levemente obcecada por trabalho e nunca cuidava da saúde. Ok. Eu era muito obcecada. Mas eu precisava ser assim, afinal, viver no espaço não era como uma viagem de férias. Tudo naquele ambiente tentava acabar com sua vida.
Uma das coisas que eu mais amava em viver em uma nave espacial era toda a sua mecânica compreensível. Era mais fácil de compreender do que as pessoas.

ɪ ɴ ᴄ ᴇ ɴ ᴅ ɪ ᴀ | ᴍᴜʀᴠᴇɴWhere stories live. Discover now