Capitulo Único.

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Uma carta para mim mesmo.


Faz um tempo que não faço esse tipo de coisa, mas hoje é um dia especial para mim, o meu dia. Hoje, quatorze de junho de dois mil e vinte completam dois anos desde que tirei todo peso e confusão que me acercavam e, mesmo que eu já tenha se passado tanto tempo eu ainda tenho vivo em minha mente cada minuto daquele dia.


Quatorze de junho de 2018, era um dia frio, estava no escritório do meu pai aqui em casa e conversava por uma rede social com um amigo que hoje em dia não tenho mais contato. Como de costume e olhava coisas aleatórias na timeline durante intervalos entre nossas respostas e tinha um cobertor sobre minhas pernas amenizando o impacto do vendo gelado.


Quase ao fim da noite respiro fundo segurando a caneca de chá quente em minhas mãos e abro a opção de escrever um novo tuite. Aquele foi um dos momentos em que mais tremi em toda minha vida, e não era nem por conta do frio congelante que fazia naquele dia, mas sim pelo nervosismo, pelo medo do que iria acontecer assim que enviasse todo aquele emaranhado de palavras. Lembro-me de escrever e apagar esse tuite dezenas de vezes, imaginando se aquele era realmente o melhor momento, bom, isso iria acontecer uma hora ou outra, não?


No minuto que enviei a thread contendo aqueles tuites cheios de sentimentos e palavras confusas algumas mensagens e notificações brilharam em meu celular. Senti o peito apertar, o medo se fez vivo outra vez, mas, no instante que li o que havia recebido o peso em meus ombros cessou, deixando apenas uma leveza absurda e uma torneira escancarada em meus olhos. Naquela noite chorei feito criança com o apoio que recebi de pessoas que tanto confiava, amigos preciosos que futuramente me apoiariam como nunca.


Admito que no começo até eu sofria com adaptações, era complicado, não nego. Mas ouvir pessoas proferindo o nome que havia escolhido era a sensação mais satisfatória do mundo. Até aquele momento eu ainda não havia falado com nenhum familiar, minha família sempre foi muito rígida em questão a isso, sempre tive medo do linchamento que receberia apenas por ser eu, então preferi manter segredo.


Alguns meses após isso contei a uma prima, a primeira pessoa de toda família a saber e, novamente o sentimento de leveza. Nada consegue explicar a sensação de alguém que está na sua vida a tanto tempo fazendo algo tão radical pelo seu bem-estar, é algo surreal. Durante muito tempo continuou sendo apenas ela, eu e meus amigos, além dos colegas de rede social que já haviam se acostumado com tudo isso.


E então chegamos no dia quatorze de junho de 2019, um ano depois de tudo isso. Muita coisa já havia acontecido, porém não acho que elas convêm ao intuito da carta. Lembro-me que era um dia de aula, estava frio novamente e meus amigos me animavam em meio a uma imensa crise de ansiedade que enfrentei durante uma grande parcela do dia. Tinha uma prova naquele dia, mas por conta do nervosismo mal consegui responder as questões contidas na mesma. Mas aí você me pergunta, por quê? Por que você estava tão nervoso a ponto de não conseguir fazer uma simples atividade? A resposta é um tanto quanto simples: naquele dia eu tinha decidido contar para minha mãe sobre mim.


Logo pela manhã daquele mesmo dia já havia a avisado que queria falar com ela e, à noite, após voltar do colégio conversamos. Novamente a grande enxurrada de lagrimas se fez presente, porém, finalmente havia dito, contado cada detalhe e explicado cada entrelinha. A reação dela foi algo que já esperava, embora tivéssemos nos aproximado mais depois de um certo tempo, ela ainda não compreendia completamente o que estava acontecendo. Continuamos assim por mais um tempo, apenas eu e ela sabendo aqui em casa, ela me respeitava, sem perguntas idiotas e sempre aberta a entender.


E então veio uma queda, dia primeiro de julho. Foi tão pouco tempo, mas foi o suficiente para destruir o resto de sanidade mental que ainda tinha. Não gosto de falar muito sobre esse dia, mas bem, já é de se imaginar o que quase aconteceu nesse dia k.


Estava tudo preparado, eu estava esgotado e cansado, todo dia parecia um inferno e eu não aguentava mais, durante esse ano que passou recebi dezenas de mensagens horríveis que foram se acumulando no fundo do meu coração, eu sabia que esse trajeto não ia ser fácil e que existem pessoas egoístas o suficiente que iriam me privar de viver. Foram dezenove pílulas e eu ainda sim consegui falhar, talvez esse tenha sido o maior erro.


Havia escrito uma carta, uma carta tão confusa e imersa que me faziam repensar cada segundo de minha vida. A assinatura final não era nada mais, nada menos que meu nome, o nome com qual todos me conheciam e, que durante muito tempo, foi tabu dentro da minha própria casa, evitando ser dito, tal como uma maldição.


Como já havia dito, falhei e a recepção familiar não foi tão boa com uma pessoa que acabou de sofrer um trauma psicológico, podemos dizer. Meu pai sempre foi um homem muito antiquado, vivendo ainda no século passado, porém não o julgo, sei que sua criação não foi boa e sua mente não é tão aberta e evoluída aos acontecimentos atuais. Porém ainda lembro de suas palavras cheias de ódio sendo cuspidas em minha direção e o quanto eu desejei sucesso Naquilo.


Chegamos em dois mil e vinte, muita coisa aconteceu durante esses quase seis meses. Nada foi dito após aquele dia, todos decidiram apagar a existência do dia primeiro de julho e bem, eu não posso falar nada, eu só estou citando esse dia aqui pois faz parte dessa história. Continuei normalmente a minha vida, tentando manter a cabeça erguida, conheci pessoas novas que me fizeram ter um pouco mais de esperança em mim mesmo e também comecei um novo hobbie!


E então, quatorze de junho de dois mil e vinte e está frio novamente, mal sinto meus dedos enquanto teclo essas palavras.


Foram dois anos turbulentos, dois anos confusos e um tanto quanto esgotantes. Não posso afirmar que tudo está bem, mas hoje, pela primeira vez ouvi minha irmã usar os pronomes certos comigo, minha mãe evita meu nome de registro e não me força mais a seguir tantos padrões. Eu sei que é demorado e que talvez demore ainda mais para que eu finalmente seja eu mesmo na frente de todos, sem medo, sem angustia, sem sentir a torneira ser aberta novamente.


Hoje foi um dia bom, um dia que eu quero deixar guardado não só no fundo do meu coração, mas quero lembrar também das palavras e sentimentos de um dia tão especial para mim. Essa carta é como um torpedo para o meu eu do futuro, para ele ler quando finalmente se sentir parte da família, para que ele possa dizer que eu estava certo, porque eu realmente espero que dia melhores venham.


Obrigado por ler até aqui.


Samuel Eduardo, 16 anos, um garoto trans completando seu segundo transversário. ^^

Uma carta para mim mesmo.Tahanan ng mga kuwento. Tumuklas ngayon