A inconstância das almas inabaláveis

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Emereth havia entrado em um beco sombreado. Encolhido entre os sacos de lixo, observava atento ao movimento da rua donde veio.  A respiração se amenizava aos poucos, mas a calmaria não durou muito. Ascarror perpassou pela boca da viela e o homem afundou-se mais em seu recôndito, os músculos se tencionaram apertando com força a criança que trazia em seus braços.
A doce menininha, com não mais que três anos, parecia arraigada a um sono profundo e calmo. Todavia, Emereth sabia da verdade. Saliúli estava mal. Se algo não fosse feito com urgência, tal sono se tornaria eterno.
Ascarror parou em frente ao beco, única saída para a dupla que ali se ocultava.  O feiticeiro não estava de fato se apoiando ao solo, mas sim, flutuava rente a ele. Um capuz rubro escondia a voracidade em seu olhar de caçador. Em verdade, todo o seu trajar destoava em meio ao povo que por ali passava. Eles o fitavam com curioso horror, entretanto, a isso pouco dava importância.
A entidade anômala não estava sozinha. Trazia como lacaios poderosas bestas que se assemelhavam a hienas, embora em vez de pelagem, apresentassem uma espécie de carapaça, como a dos crocodilos. Tais criaturas farejavam tudo e todos que passavam por eles, mas por sorte dos transeuntes, não pareciam lhes dar atenção. Além disso, não tinham qualquer receio frente aos automóveis que freavam alarmados ante a eles. Ainda assim, nenhum motorista ousava sequer acionar a buzina.
Apesar de toda a apreensão, Ascarror não deu atenção ao beco, ao qual lançou apenas um olhar de soslaio. É possível que do alto de sua arrogância, jamais pensasse em se esconder ali e assim não passava pela sua cabeça que outros o fizessem. Tampouco seus lacaios deram importância a área. Talvez, por sorte, o olor penetrante do lixo houvesse disfarçado o cheiro de Emereth e sua filha.
Assim que o caçador sumiu de vista, Emereth agarrou um saco de estopa de tamanho considerável, despejou o lixo que ali havia fazendo o mínimo de ruído possível. Depois o amarrou a cintura e ao pescoço, de forma que Saliúli poderia ser depositada sentada sem que ele tivesse que usar os braços para segurá-la.  Ele foi até a beira da saída em passos cautos e não vislumbrou maneira de prosseguir por ali sem ser visto. O beco o escondera por enquanto, mas não poderia garantir segurança por muito tempo.
O homem voltou ao fundo da travessa e buscou traçar outra rota. Empilhou dois caixotes e subiu neles, mas antes, retirou os sapatos a fim de facilitar a escalada. Assim, pretendia alcançar o topo do muro que o limitava. Saltou duas vezes, sem sucesso. A cada salto tinha de se reequilibrar sobre os caixotes que insistiam em sambar.
Na terceira tentativa, os engradados se desfizeram em uma pilha retorcida de madeira. Emereth alcançou o topo do muro com apenas as primeiras falanges dos dedos indicador e médio da mão esquerda. Contudo, as vezes uma pequena ponta de esperança é mais do que se precisa para nos agarrarmos à vida. Manifestando força quase sobre humana, o homem conseguiu se erguer e se içou.  
Já sobre o topo do muro, Emereth se dependurou nas grades de uma janela e galgou altura até chegar à laje superior do imóvel. Deslocou-se em gatinhas até a frente do prédio sobre o qual estava, pelo cheiro, percebeu se tratar de uma padaria. Agindo desta forma teve melhor noção da situação.
O irascível feiticeiro estava a poucos metros de distância com clara insatisfação. Não demoraria até que começasse a açoitar suas bestas por pouca coisa. Estas últimas estavam espalhadas. Emereth contou nove.
Duas faziam a guarda de Ascarror, três campeavam um grande terreno baldio por onde Emereth havia a pouco passado. Aquelas, possivelmente, logo achariam seu rastro. As outras quatro bestas estavam mais esparsas em meio a avenida, mas nem por isso, menos ameaçadoras. Afinal, qualquer delas poderia romper a distância que os separava em segundos e dividir um homem ao meio com a facilidade que uma faca abre um melão. Talvez, ainda houvesse uma ou outra fora do raio de sua visão, mas já era suficiente para entender o que enfrentava.
Emereth não entendia como Ascarror matinha seus poderes no plano onde estavam, até onde sabia isso era potencialmente impossível. Ainda assim, não se prendeu a teorizar fórmulas como usualmente faria. Sua mente estava voltada para um plano de fuga. Então, ele saltou para a laje da edificação vizinha e mais duas conseguintes. Dado ao cansaço, no quarto salto perdeu o equilíbrio, vindo a cair no chão. Por sorte, teve presença de espírito suficiente para girar o corpo protegendo Saliúli, mas com isso obteve algumas escoriações sobre o ombro e parte das costas.
Após poucos segundos de descanso, voltou a sua rotina. Escalou a torre da caixa d’agua de onde estava e mesmo com o pouco espaço, pulou para um grande edifício comercial em construção. Confiando em que as centenas de salas lhe dariam alguma proteção, fez breve inspeção em sua filha, a fim de verificar se ela havia se machucado. Aliviou-se em saber que não era o caso.
Novamente era momento de observar a situação. Vislumbrando a avenida do alto da construção Emereth notou com agrado que havia conseguido colocar um bom espaço entre ele e Ascarror. Mais que isso, dali conseguia enxergar que não estavam tão longe de seu objetivo, era possível ver velas e o cintilar azul do mar. O oceano estava logo ali, talvez dois, três quilômetros e presumiu que a melhor rota a seguir passava pelo Parque municipal, de forma que a floresta lhe traria cobertura.
Emereth desceu as aparentes infindáveis escadarias da construção e chegou à Avenida. Esperou o melhor momento, vigiando seu antagonista. Não tardou até que Ascarror, junto com dois de seus lacaios, avançasse sobre um rapaz de cabelos negros, tais como Emereth, e o agarrasse pelo pescoço o erguendo do chão. Foi perceptível que de pronto o feiticeiro entendeu o engano, jogando a rapaz de lado. Este último saiu catando cavaco por uns quatro metros, aos sons dos balidos das bestas (Ou seja lá o nome que se dê ao som horrível que elas faziam).
Tal equívoco pode ter sido aterrorizante e constrangedor para o rapaz, mas foi a sorte de Emereth que atravessou as quatro faixas da pista num rompante e adentrou ao parque municipal pulando a cerca.  O local não recebia a devida manutenção há muito e as moitas cresciam selvagens e irregulares, perfeito para se esconder. Tentando evitar ao máximo as trilhas o pai se pôs a correr por entre as árvores.
Em dado momento, porém, ouviu-se um rosnar. Emereth sem pestanejar se recostou sob a guarita de um flamboyant, mas em seguida, o silêncio tomou conta do local. Nem os grilos pareciam inclinados a quebrar aquela placidez sonora. Ele recuou lentamente até um conjunto de arbustos e se meteu neles. Tarde demais para perceber os espinhos que se cravaram em seus pés braços e costas. Ele ignorou solenemente a dor, preocupando-se apenas que sua carga saísse intacta.
Ao recuar mais um passo, Emereth tropeçou em alguma coisa, caindo sentado sobre ela. Ele travou um berro na garganta ao perceber se tratar de uma das bestas de Ascarror. Para alívio, esta já não mais respirava. Emereth inspecionou o cadáver com prudência.
Lacerações profundas sulcavam as áreas do pescoço e ombros do lacaio. Apesar de tudo, Emereth não pôde deixar de notar que se tratava de criatura formidável, certamente o apogeu da cadeia alimentar do ambiente de onde se originou. Então, estremeceu ao tentar imaginar que outra criatura a teria abatido. Ele logo descobriria.
Ainda enquanto examinava o corpo, foi atingido pelas costas por algo grande e pesado. Num ato reflexo, apoiou-se sobre os joelhos e cotovelos, protegendo Saliúli. Os espinhos do arbusto fincaram mais profundamente em sua carne. Tão logo sentiu o alívio do peso sair de cima de si, saltou como um gafanhoto e os aguilhões se desprenderam abruptamente de seu corpo, carregando consigo generosos pedaços de pele.
Ao aterrissar, no entanto, sentiu os joelhos fraquejarem e mais uma vez desabou. Virou a cabeça abruptamente para encarar o perigo. Felizmente, o perigo não o encarou de volta. Diante dele, duas das bestas de Ascarror se digladiavam em ferrenha contenda da qual só haveria um sobrevivente. Isso trazia duas notícias bem vindas a Emereth. A primeira é que as criaturas não dariam atenção a ele, pelo menos por enquanto. A segunda é que se os lacaios voltaram a seu estado natural e selvagem, quer dizer que estavam muito distantes do feiticeiro para serem influenciados por seu poder.
Com um rolamento Emereth escapou de ser envolvido novamente da contenda das feras e recompondo o seu espírito, ergueu-se com a ajuda de um tronco curvo. Ele recomeçou sua jornada com um trajeto tortuoso, guiado por dores e cambaleios. Encontrou uma trilha pouco usada e resolveu permanecer por ela, enquanto conviesse. Porém, tal caminho enveredava por terreno escarpado e havia chovido consideravelmente nos últimos dias. O homem se viu surpreendido por um bloco de terra que ruiu sob seus pés o fazendo rolar barranco abaixo por quase cinquenta metros. Ele embrulhou o corpo em torno de Saliúli e torceu para que não se ferissem em demasia, no meio do caminho ele apagou.
Emereth acordou exasperado, como quem estivesse em apneia. Examinou mais uma vez sua filha constatando, desta vez, alguns hematomas e um corte na testa, certamente causado por uma pedra. Por alguns instantes, ele esqueceu que estava sendo caçado, esqueceu das bestas.
Emereth apenas se debruçou sobre Saliúli e chorou.
Pelo bem de Saliúli, no entanto, Emereth não poderia permanecer sob aquele sentimento de desespero, então calou as emoções e continuou. Um súbito êxtase quase lhe roubou o controle das pernas quando chegou ao fim do parque. Checou as ruas e assim entrou no Bairro Litorâneo. Munido de novo vigor apressou os passos chegando as docas.
O percurso ali lhe era conhecido e não passou muito tempo até que achasse o píer número 04. Aqueles poucos momentos de brandura, porém, lhe tiraram o empenho em vigilância que vinha mantendo. Viu-se surpreendido quando uma rajada de plasma explodiu diante da estrutura de madeira que procurava alcançar.
Emereth agarrou-se a balaustrada que divisava a terra do mar e só por isso não foi novamente jogado ao solo. O sol lhe atormentou os olhos quando tentou observar o topo do ladeira donde viera o ataque, mas vislumbrou estarrecido a silhueta de Ascarror que se formava em contraste a luminosidade do astro rei. Ele baixou a cabeça buscando fugir do brilho intenso e percebeu que as bestas desciam a encosta em carreira ensandecida. Alguns já estavam muito mais próximos do que ele imaginava possível.
Uma das bestas saltou sobre Emereth expondo as poderosas garras e dentes afiados. O homem por puro reflexo muscular conseguiu escapara a investida. A besta se chocou contra o balaústre, destruindo-o e caindo nas águas salgadas.
Emereth adentrou ao píer correndo o mais que podia, ciente que Ascarror em seu encalço o alcançaria num estalar de dedos. Enfim viu o que mais desejava naquele momento, uma antiga placa de metal enferrujado com os dizeres: “Proibido mergulhar nesta área”. Ele não era de respeitar placas e jogou-se de cabeça na massa de água.
O tempo nunca estivera com tamanha birra contra Emereth. Durante toda a sua trajetória pensava que naquela última hora poderia pensar num meio de imergir de forma segura a sua pequena. No fim das contas, o máximo que pode fazer foi tapar com a mão a boca e narinas da menina.
E eis que repentinamente ele surge. Imponente em todo o seu esplendor, última ponta de esperança a qual Emereth se agarrara. Jazia sereno, deitado sobre uma cama de algas e rodeado de peixes multicoloridos, o guarda roupas.
Sua superfície continuava intacta ao revés do que se pudesse presumir após tanto tempo sob aquelas condições. Até o verniz parecia intacto e nem as cracas ousaram fazer dele moradia. Pela perspectiva do rapaz a única diferença que havia da última vez que o vira, era que as cordas que o envolviam já não existiam, provavelmente consumidas pelos caprichos dos anos. E devido a isso, as portas estavam balançando aos prazeres do vai e vem do mar, escancaradas como se esperassem para dar um abraço fraterno e conduzir Emereth de volta a sua terra natal.
Uma bolha luminosa atingiu a flor d’agua e no impacto expandiu-se em proporções colossais repelindo a água e formando um imenso bolsão de ar. Ascarror quis em seguida destruir o guarda roupas. Mas já era tarde, com advento do bolsão de ar, o plácido mergulhar de Emereth virou queda livre. Ele chocou-se com firmeza fundo de madeira do móvel, perdendo o folego. Ainda assim, conseguiu fechar as portas antes que o peso do oceano recaísse o guarda roupas, esmagando-o por completo.
Com um chute, Emereth abriu as portas do guarda roupas. Prostrado, tossia incessantemente. A princípio poderia se imaginar que fora por ter sorvido grandes quantidades de água. Porém, não era só isso. O ar que aspirava descia a garganta queimando, parecia incendiar seus pulmões e ele quase perdeu os sentidos.
Contudo, o que se confundia com morte, era transformação. A atmosfera de sua terra natal estava fazendo seu corpo se lembrar de quem era. Ele podia sentir sua consciência descer as profundezas da terra com gigantescas raízes trazendo de volta a sabedoria oculta que uma vez havia rejeitado em favor de uma vida simples em outro mundo. Se tornava mais uma vez uno com gaia. Não apenas um mago, o mago. E o mago é implacável.
Seu quarto estava como costumava ser, descontando a poeira acumulada nos móveis. Tornou-se óbvio que Ascarror houvera encontrado nova forma de trasladar para o plano terreno. Emereth trocou os lençóis da cama e deixou Saliúli deitada. Agora, podia sentir que a energia de Gaia que o nutria também renovava as forças da menina. Isso o acalmava e o fazia notar que havia outra situação que exigia sua atenção com maior premência. Ele subiu no parapeito da janela e uma lufada de vento o arrancou com violência dali o fazendo percorrer algumas centenas de quilômetros em poucos minutos.
O telhado da torre de um castelo enegrecido praticamente se desintegrou quando Emereth o atravessou. Diante dele, surgia uma versão mais velha e robusta de Ascarror que reclinado sobre uma poltrona luxuosa, parecia em transe. Em suas mãos, segurava uma joia rósea do tamanho de uma laranja. O mago a tomou e lançou contra a parede, centenas de pedaços dela caíram no chão ao mesmo tempo em que Ascarror despertava.
Nenhum dos dois contrários parecia surpreso em ver o outro.
- Então, só sua consciência atravessou os planos. -  Disse Emereth. – Tomou o corpo de um inocente, presumo.
- Um sacrifício menor. - Um sorriso contido tomou os lábios de Ascarror. – Nada nem perto de tudo o que você já fez. Meu pai foi um dos seus inocentes, lembra-se?
O mago pareceu mergulhar em lembranças nada prazerosas. – É disso que se trata? Vingança pura e simples?
Desta vez Ascarror escancarou um sorriso largo. – Não nada tão simples assim. Não nego que adoraria arrancar a sua pele e fritar em óleo fervente enquanto você assiste. Mas o fato real, você sabe, é que aquela sua cria vai fazer os dois planos entrarem em colapso, uma hora ou outra. Afinal, o oráculo nunca erra.
O mago pareceu aturdido quando ouviu aquilo. No fundo sempre soube a verdade, mas de alguma forma havia escondido aquela informação no fundo do coração e não queria voltar a tê-la. Emereth baixou os punhos e Ascarror se levantou.
- A criança deve ser eliminada. – Ascarror proferiu. -  Contudo, por mais inventivo que eu seja quanto a pensar em meios de torturá-lo, jamais pensaria em deixar que você mesmo fosse o carrasco de sua prole. Fique aqui, volte para a terra e morra como um zé ninguém, não importa. Vou tomar por minha a missão que deveria ser sua e salvar os dois mundos. Não posso mentir e dizer que a ideia não me agrada, no entanto.
É interessante ver como um alguém pode mudar de súbito. Ainda que busquemos racionalizar todas as suas atitudes de uma pessoa, é certo que lá no fundo, bem no âmago da essência delas, permanece espaço para instintos básicos. Estes últimos, podem surgir por inúmeras razões em diversos momentos da vida, sendo que, em muitas dessas vezes, trazem consequências irremediáveis.
Um desses impulsos primordiais que ainda permeiam a alma dos homens, seja de qual mundo for, é o da proteção. Talvez seja um dos mais fortes, justamente porque está diretamente ligado à paixão e ao amor. Então, quando aquele fala, não há espaço para lógica ou dialetações.
Não é mera raiva, que aparece diante de coisas fúteis como ter um pé pisado no meio da multidão, ou ter um bife apanhado de seu prato.
Dificilmente haveria quaisquer dilemas aparentes ou sentido de certo e errado. Afinal, a palavra “instinto”, em si, é justamente uma maneira de justificar uma ação impensada, mais comumente ligada aos atos dos animais do que aos dos humanos.
A proteção sobressai, inclusive, a outro instinto basilar muito mais comum de se ver, o da autopreservação. Sim, pois, em diversas ocasiões, quando se ativa aquele primeiro, o segundo fica relegado ao ostracismo.
 Emereth se virou de súbito na direção de Ascarror, rompeu a distância entre eles em um átimo de segundo e o atingiu no peito com um massivo golpe carregado de poder e fúria. O feiticeiro foi lançado contra a parede como se fosse um boneco de uma criança pirracenta. Porém, antes que ele encarasse a escuridão eterna, Emereth o ouviu dizer:
- Pai, está feito.
Após essas palavras, Emereth voou o mais rápido que pode de volta a sua casa. Lá chegando, em seu quarto, havia quatro dos lacaios de Ascarror.
Todos estavam mortos. Saliúli havia desaparecido.

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