A Comilança

21 4 2
                                    

Nova São Paulo, SP

1 mês para a Revolta


 O talher de cobre afiado e reluzente resvalava por entre tecidos e camadas de proteína da tenra carne escura que estava sobre uma bandeja de prata. O suco translúcido vertia do corte e o vapor de comida recém-feita no forno inundava as narinas do deputado. Cubos de manteiga de ervas semi-derretidos se liquefaziam no topo e pincelavam rios de gordura sobre a carne suculenta. A gigantesca peça de proteína estava sendo partilhada e ramos de alecrim e tomilho já se perdiam sob os olhos do homem num prato também em cobre. Batatas tão douradas e tão quentes quanto o sol antes mesmo de serem cortadas já pornograficamente abriam-se, liberando mais fumaça para as narinas do deputado, que fincava o garfo na rígida película da crosta em manteiga e azeite do tubérculo. O homem gordalhaço, em instinto bestial, pegava, ainda de mãos sujas e gordurosas, uma cintilante molheira também acobreada — aparentemente, todos os utensílios eram do mesmo jogo... talvez comprados em liquidação. Cloves, o deputado, então sem pudor algum despejava senão todo, mas grande parte do molho escuro e quente em seu prato, inundando batatas, carne, tomilho, alecrim e cenouras caramelizadas como o inferno dum Diabo doce; o molho formava um oceano e o homem lambia os dedos, mastigava feito porco faminto, de boca aberta e ruidosa, sujando rosto, roupa e a toalha de mesa branca.

Lentamente, o quadro da filmagem se distanciava da comilança do deputado, num plano mais aberto, e já era possível ver que outras pessoas estavam à mesa, juntas a Cloves e, assim como ele, interpretavam seus instintos mais primitivos e grotescamente se assemelhavam à criaturas suínas, enquanto se deliciavam do prato suculento. Eram então: um porco maior e outras duas porcas, uma bem menor que a outra — sua filha e sua esposa, respectivamente.

Num outro quadro, já em outra câmera, uma senhorazinha de seus setenta e tantos anos estava muito bem centralizada, atrás de um maciço balcão de granito. Sorridente, segurava um prato servido da mesma carne suculenta, contudo, com muito mais civilidade e elegância; com muito mais requinte. A mulher de olhar doce e jeito risonho esbanjava simpatia para a câmera quase com exagero, com seus olhos azuis cintilantes e seus dentes arianos branquíssimos refletindo toda a luz do lugar.

Margarida, seu nome, ao abaixar o prato para mostrá-lo à TV, disse:

— E esta foi a nossa receita de hoje... Tá bom, Cloves? — a idosa, em euforia, inquiriu ao deputado quase que afirmando, e continuou — Cloves tá de boca cheia — e riu, respondendo ao gemido afirmativo que o deputado lhe dera — hoje foi assim — prosseguiu — esse episódio maravilhoso com o nosso querido deputado Cloves Cândido e sua família, fazendo a receita favorita desse pessoal aqui — riu novamente, levando os olhos a Cloves e a seus familiares.

Deixando o balcão de granito para trás, indo até a mesa em que a família Cândido se lambuzava da carne suculenta, Margarida tinha em mãos um daqueles pães rústicos, um tanto que amarronzado, com uma crosta nitidamente dura. Colocou-o, o pão, sobre a mesa com a toalha branca manchada de molho e gordura.

— Esse daqui é o ponto forte da comilança, gente — disse a senhora, cortando com dificuldade o pão — dá uma olhada — Margarida pegou um bocado de pão com uma das mãos e acariciou o prato inundado de Cloves com o bocado.

— Toma, come isso! Sente a maravilha... — entregou-o ao deputado.

— E-está bem — receoso, cedeu, com riso de desconforto entalhado na gorda face.

O quadro da câmera a esta altura já estava fechado exclusivamente em Cloves, num close específico do encontro de sua mão gordurosa — onde o bocado de pão estava — e de seus lábios brilhosos e boca escancarada. Margarida, as porcas, a equipe e quem quer que estivesse assistindo a transmissão, estavam todos de olhar fixo para a degustação do Sr. Cândido.

Abocanhou-o, o bocado. Ainda que de boca fechada e olhos arregalados, o som de prazer vindo do homem era alto e despertou alívio em Margarida, e alegria para todo o restante dos que estavam no estúdio.

— Isso daqui é coisa divina, Margarida! Pu-ta-que-pa...

— Opa! É ao vivo, olha o palavrão, deputado! — Margarida o intenrrompeu com

com risada na voz.

Todos riram e então se serviram de outros bocados de pão, passando-os em seus pratos e comendo mais e mais, sujando mais e mais; mais e mais bestiais. Agora, até Dona Margarida era bicho.

— E esse foi o nosso brunch com a família Cândido! Uma boa e abençoada semana para você aí de casa! E espero que tenha anotado essa receita ma-ra-vi-lho-sa...

— Espetacular! — interromperam, em coro, Cloves e sua família, balançando suas cabeças em positivo.

— Espetacular, né?

— Demais! — assentiram.

— (...) essa receita maravilhosa de Carne de Crioulo com Manteiga de Ervas — completou — Bom dia!

AntropofágicosWhere stories live. Discover now