- E isso fica aonde? - pergunto.
-Ingramar? Á leste de Tarfesta e oeste de Gorape, bem ao sul próximo ao litoral.
-Por Deus, eu estou delirando. É isso! Estou delirando de febre! - digo e Kalil se aproxima segurando meu rosto com as duas mãos. - O que está fazendo? - pergunto piscando rápido enquanto observava seus olhos me avaliarem.
-Você não tem febre - ele me solta e eu bufo.
-E você não é real, igualzinho a esse lugar. Uma hora ou outra irão me dar um medicamento e eu voltarei a Horton para viver minha vida inútil.
-Considera sua vida inútil? - Kalil pergunta e eu paro de andar para observá-lo.
-Os médicos e o governo consideram, por que eu não consideraria? - rebato e ele fecha a cara ficando emburrado.
-O governo não tem direito de inutilizar vidas, e médicos, que suponho que sejam seus curandeiros também não - Kalil diz e eu volto a andar.
Tropeço em um galho quebrado e vou ao chão, o garoto segura meu braço antes que minha cara batesse em uma pedra me puxando para cima.
-Pode tomar cuidado? - ele resmunga.
-Eu sou cuidadosa até demais, mas sou naturalmente desastrada e esse vestido não me ajuda - digo e quase o ouço rir.
-Você tem quantos anos? - ele pergunta e eu o encaro.
-Pensei que não contasse tempo.
-Muitos não contam, mas costumo gostar de saber essas coisas - Kalil resmunga.
-Tenho dezessete, um mês para dezoito - digo baixo e ele coça a garganta.
-Tenho vinte - Kalil fala - Entrei para o exército com quinze.
-Sinto muito - resmungo e ele me encara.
-Não sinta, eu gosto do que faço.
-Gosta de ser o primeiro a quem vão recorrer quando tiver uma guerra? - Kalil parece pensar, mas então assente com a cabeça.
-Me faz sentir importante, ser o filho bastardo do rei tem seus benefícios. Nunca haverá uma guerra pois o rei se importa demais com o batalhão - Kalil parece bravo, mas sua expressão era neutra.
-Por que o rei não o assumiu?
-Eu estou fora dos padrões - ele diz e eu demonstro confusão. - A hierarquia vale de acordo com o quão próximo do padrão você está.
-Puta merda, isso é pior do que eu imaginei - resmungo. -Mas você é do tipo bonito, como não está no padrão.
-O padrão são loiros - ele diz e eu rio.
-Oh, que sorte a minha - eu gargalho e Kalil me encara, e depois o meu cabelo escuro.
-Seu cabelo é castanho.
-Eu pinto - digo e ele faz careta.
-Por que?
-Para estar no padrão de onde eu venho - digo e ele suspira.
-Você está no padrão em algum lugar, então - Kalil finalmente sorri mostrando os caninos pontudinhos.
-É, estou.
Andamos em silêncio por alguns minutos até um vento frio bater em meus cabelos quase me fazendo tremer.
-Pegue isso - Kalil diz me dando um tecido vermelho que eu não reparei que ele trazia.
Era uma capa enorme e vermelha, me senti a própria chapeuzinho.
-Como um pedaço de pano é tão quente? É feitiçaria? - pergunto rindo.
-Li Carr ajudou minha mãe a fazer a capa, ela esquenta no frio e ajuda com o que precisa no verão - ele diz sem expressão e eu suspiro.
-Você é o que? Além de bastardo...- me sinto levemente mal, mas prossigo - qual a sua história?
-Minha mãe morreu no meu nascimento, eu fui rejeitado pelo rei assim que nasci. Entrei para a guarda aos quinze e vivo com Cassidy e Marias há muito tempo, conheço os meninos desde o primeiro dia no exército... - ele diz e eu concordo com a cabeça demonstrando que entendi.
-Os sete, é como eu e Cass os chamamos. Os sete - Kalil repete. - Marlon, Muriel, Marcos, Melburn, Mertan, Mirtan, Martez - ele fala e eu rio.
-Alguém gostava mesmo da letra M - digo e Kalil ri.
-Sei que não se chama Jenkins - ele fala sério e eu bufo.
-Jenkins é menos vergonhoso, será que dá para deixar passar? - peço e ele balança a cabeça negando.
-Eu valorizo o nome que os pais deram aos filhos pois o meu nome foi dado por Cass, e ela não tem laços sanguíneos comigo. Valorizo o meu laço com ela, mas gostaria de saber qual nome minha mãe teria me dado - ele diz e eu suspiro.
-Tellassyn - resmungo e ele me encara com um expressão estranha. - Não dá para ser chamada de Tellassyn, não dá para ser chamada de Tella e muito menos de Syn. Nem os apelidos são decentes...
-Ah, não é péssimo - ele diz e eu o encaro o desafiando a contrariar. - Pode ser chamada de Ella, ou Tessin - Kalil diz e eu rio sem humor.
-Nunca me chame de Tessin - digo séria e ele ergue as mãos em rendição.
-Mas não é um nome ruim - Kalil insiste. - Devia ouvir os nomes dos príncipes... - ele ri.
Os príncipes, seus meio irmãos.
-A mãe deles é Felícya, então todos eles começam com F - ele diz e eu rio.
-Oh, coitados...
-Françoice, Francis e Fransco - Kalil diz e eu gargalho alto.
-Coitados mesmo - enxugo uma lágrima.
Então uma dor de cabeça me faz parar de andar.
-Podemos descansar se estiver afadigada - ele diz e eu concordo me sentando em uma raiz de uma árvore enorme.
-Cansada, ok? Afadigada não, cansada - digo e Kalil sorri ao sentar ao meu lado e afagar delicadamente minhas costas.
-Você passou por noites difíceis, deveria ter tido mais tempo para repousar - ele diz e eu concordo com a cabeça sem muito interesse.
-Descansar, Kalil - digo e quase o sinto sua postura ficar ereta ao mencionar seu nome. Mas ignoro ao escorar minha cabeça em seu ombro com os olhos fechados.
*
Kalil não estava por perto quando acordei. Era noite e eu estava no meio de uma clareira perto do fogo controlado por rochas.
-Resolvi que passaremos a noite aqui, estamos ambos cansados e acho pertinente que descansemos durante a noite.
-Ok - digo voltando a deitar a cabeça e, ao tentar dormir e não conseguir, me sento e observo o garoto mexer no fogo com um graveto.
A bile sobe pela minha garganta e eu fico de pé correndo até a raiz de uma árvore e colocando para fora todo o almoço.
Kalil estava próximo de mim tão rápido que me segurou antes que eu caísse sem consciência em seus braços.
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Pelas Estrelas - conto
FantasyUma garota desastrada. Uma febre com um sintoma predominante: alucinações. Um buraco verde e luzinhas brilhantes a levam para um lugar novo e belo, totalmente diferente do que ela conhecia. E, divida entre dois amores, como ela decide o próprio d...