Capítulo 5

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- E isso fica aonde? - pergunto.

-Ingramar? Á leste de Tarfesta e oeste de Gorape, bem ao sul próximo ao litoral. 

-Por Deus, eu estou delirando. É isso! Estou delirando de febre! - digo e Kalil se aproxima segurando meu rosto com as duas mãos. - O que está fazendo? - pergunto piscando rápido enquanto observava  seus olhos me avaliarem.

-Você não tem febre - ele me solta e eu bufo.

-E você não é real, igualzinho a esse lugar. Uma hora ou outra irão me dar um medicamento e eu voltarei a Horton para viver minha vida inútil.

-Considera sua vida inútil? - Kalil pergunta e eu paro de andar para observá-lo.

-Os médicos e o governo consideram, por que eu não consideraria? - rebato e ele fecha a cara ficando emburrado.

-O governo não tem direito de inutilizar vidas, e médicos, que suponho que sejam seus curandeiros também não - Kalil diz e eu volto a andar.

Tropeço em um galho quebrado e vou ao chão, o garoto segura meu braço antes que minha cara batesse em uma pedra me puxando para cima.

-Pode tomar cuidado? - ele resmunga.

-Eu sou cuidadosa até demais, mas sou naturalmente desastrada e esse vestido não me ajuda - digo e quase o ouço rir.

-Você tem quantos anos? - ele pergunta e eu o encaro.

-Pensei que não contasse tempo.

-Muitos não contam, mas costumo gostar de saber essas coisas - Kalil resmunga.

-Tenho dezessete, um mês para dezoito - digo baixo e ele coça a garganta.

-Tenho vinte - Kalil fala - Entrei para o exército com quinze.

-Sinto muito - resmungo e ele me encara.

-Não sinta, eu gosto do que faço.

-Gosta de ser o primeiro a quem vão recorrer quando tiver uma guerra? - Kalil parece pensar, mas então assente com a cabeça.

-Me faz sentir importante, ser o filho bastardo do rei tem seus benefícios. Nunca haverá uma guerra pois o rei se importa demais com o batalhão - Kalil parece bravo, mas sua expressão era neutra.

-Por que o rei não o assumiu? 

-Eu estou fora dos padrões - ele diz e eu demonstro confusão. - A hierarquia vale de acordo com o quão próximo do padrão você está.

-Puta merda, isso é pior do que eu imaginei - resmungo. -Mas você é do tipo bonito, como não está no padrão.

-O padrão são loiros - ele diz e eu rio.

-Oh, que sorte a minha - eu gargalho e Kalil me encara, e depois o meu cabelo escuro.

-Seu cabelo é castanho.

-Eu pinto - digo e ele faz careta.

-Por que?

-Para estar no padrão de onde eu venho - digo e ele suspira.

-Você está no padrão em algum lugar, então - Kalil finalmente sorri mostrando os caninos pontudinhos.

-É, estou.

Andamos em silêncio por alguns minutos até um vento frio bater em meus cabelos quase me fazendo tremer.

-Pegue isso - Kalil diz me dando um tecido vermelho que eu não reparei que ele trazia.

Era uma capa enorme e vermelha, me senti a própria chapeuzinho.

-Como um pedaço de pano é tão quente? É feitiçaria? - pergunto rindo.

-Li Carr ajudou minha mãe a fazer a capa, ela esquenta no frio e ajuda com o que precisa no verão - ele diz sem expressão e eu suspiro.

-Você é o que? Além de bastardo...- me sinto levemente mal, mas prossigo - qual a sua história? 

-Minha mãe morreu no meu nascimento, eu fui rejeitado pelo rei assim que nasci. Entrei para a guarda aos quinze e vivo com Cassidy e Marias há muito tempo, conheço os meninos desde o primeiro dia no exército... - ele diz e eu concordo com a cabeça demonstrando que entendi.

-Os sete, é como eu e Cass os chamamos. Os sete - Kalil repete. - Marlon, Muriel, Marcos, Melburn, Mertan, Mirtan, Martez - ele fala e eu rio.

-Alguém gostava mesmo da letra M - digo e Kalil ri.

-Sei que não se chama Jenkins - ele fala sério e eu bufo.

-Jenkins é menos vergonhoso, será que dá para deixar passar? - peço e ele balança a cabeça negando. 

-Eu valorizo o nome que os pais deram aos filhos pois o meu nome foi dado por Cass, e ela não tem laços sanguíneos comigo. Valorizo o meu laço com ela, mas gostaria de saber qual nome minha mãe teria me dado - ele diz e eu suspiro.

-Tellassyn - resmungo e ele me encara com um expressão estranha. - Não dá para ser chamada de Tellassyn, não dá para ser chamada de Tella e muito menos de Syn. Nem os apelidos são decentes...

-Ah, não é péssimo - ele diz e eu o encaro o desafiando a contrariar. - Pode ser chamada de Ella, ou Tessin - Kalil diz e eu rio sem humor.

-Nunca me chame de Tessin - digo séria e ele ergue as mãos em rendição. 

-Mas não é um nome ruim - Kalil insiste. - Devia ouvir os nomes dos príncipes... - ele ri.

Os príncipes, seus meio irmãos.

-A mãe deles é Felícya, então todos eles começam com F - ele diz e eu rio. 

-Oh, coitados... 

-Françoice, Francis e Fransco - Kalil diz e eu gargalho alto.

-Coitados mesmo - enxugo uma lágrima.

Então uma dor de cabeça me faz parar de andar.

-Podemos descansar se estiver afadigada - ele diz e eu concordo me sentando em uma raiz de uma árvore enorme.

-Cansada, ok? Afadigada não, cansada - digo e Kalil sorri ao sentar ao meu lado e afagar delicadamente minhas costas.

-Você passou por noites difíceis, deveria ter tido mais tempo para repousar - ele diz e eu concordo com a cabeça sem muito interesse.

-Descansar, Kalil - digo e quase o sinto sua postura ficar ereta ao mencionar seu nome. Mas ignoro ao escorar minha cabeça em seu ombro com os olhos fechados. 

*

Kalil não estava por perto quando acordei. Era noite e eu estava no meio de uma clareira perto do fogo controlado por rochas.

-Resolvi que passaremos a noite aqui, estamos ambos cansados e acho pertinente que descansemos durante a noite.

-Ok - digo voltando a deitar a cabeça e, ao tentar dormir e não conseguir, me sento e observo o garoto mexer no fogo com um graveto.

A bile sobe pela minha garganta e eu fico de pé correndo até a raiz de uma árvore e colocando para fora todo o almoço.

Kalil estava próximo de mim tão rápido que me segurou antes que eu caísse sem consciência em seus braços.

Pelas Estrelas - contoOnde histórias criam vida. Descubra agora