Prólogo

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Vinte e oito anos atrás...

Estou morrendo de fome depois de quase três dias sem comer, apenas bebendo água. Eu queria... queria ter uma cama quente para dormir... um prato de comida para comer... queria alguém que me dissesse que está tudo bem.

Mas esses são desejos inalcançáveis que deixei de lado quando aceitei que ninguém quer um menino negro, mais velho que as crianças do berçário e com um gênio difícil. Passei por tantas famílias que perdi as contas, e em todas elas fui renegado. "Ele é muito velho" "será difícil educa-lo do nosso jeito" "ele é muito calado" "esse menino é revoltado e vai se virar contra nós" e o pior de todos; "quando crescer será um drogado".

Nenhuma dessas pessoas queriam realmente um filho para amar e sim, para esfregar na cara da sociedade que tinham a família perfeita. Em algumas casas até passei fome. Às vezes me pergunto se passo por tudo isso porque mereço. Nem minha própria mãe me quis! Um dia ela estava sorrindo, um verdadeiro milagre, no outro ela arrumou minhas coisas e me levou até um abrigo e sumiu... um dia eu tinha uma casa e no outro estava sozinho, nem mesmo os parentes quiseram ficar comigo. O que ninguém entende é que ser abandonado machuca, revolta e se torna angustiante, isso faz com que você lute contra tudo. Contra o desprezo, palavras vazias, qualquer tipo de carinho. Faz desconfiar de tudo e todos e o que realmente permanece é a raiva do mundo, o ódio por si mesmo por não ser suficiente.

Pequenos delitos foram necessários para me manter alimentado, muitos comerciantes faziam vistas grossas para o que eu fazia. Mas os outros quando me pegavam, me batiam, me humilhavam; neguinho safado quer vida fácil. Roubar é mais fácil do que pedir. Só que muitas vezes esqueciam que eles mesmo faziam questão de negar um pedaço de pão. HIPÓCRITAS!

Fui levado várias vezes por policiais, mas eles sempre me mandavam embora depois de me alimentar. Principalmente um; o senhor Salomão. Acho que ele foi a única pessoa que parecia entender o que eu passava, nunca me olhou com nojo, muito menos me recriminava pelas coisas que eu fazia. Mas como qualquer pessoa normal, sua paciência chegou ao fim.

Você quer acabar na bandidagem? Quer acabar sendo preso ou até mesmo morto? Me responda garoto! — Ele pergunto um dia dentro da sua viatura.

— Não, tudo o que eu quero é não morrer de fome e de frio. Vocês julgam, mas não sabem o que eu passo, as coisas que ouço todos os dias!

— Você quer mudar isso? Quer uma vida diferente? Quer que as pessoas passem a te respeitar e te ouvir? — Ele me pergunta.

— Quem não quer? Mas tudo o que escuto são ofensas, desprezo e humilhação. "Esse neguinho nunca vai ser nada na vida, seu fim será em um beco com a boca espumando por causa de uma overdose". É isso que eu escuto!

— Isso vai mudar, eu prometo a você. Mas preciso da sua palavra. Palavra de homem Sony. Vai me prometer que não vai fazer mais isso, quando estiver com fome você vai me ligar a cobrar e eu saberei que é você. Vai continuar indo para a escola até que eu consiga resolver tudo. — Ele diz sério. — Pode me dar a sua palavra de homem?

E ele fez!

Um dia ele chegou no abrigo, depois disso foi tudo rápido. Assim que pisei na sua casa, fui abraçado por ele, pela sua esposa e filho. Passei de ser sozinho, para ser um filho e irmão. Eu lutei... testei toda a cota de paciência deles comigo. Quis testar até onde iria a sua bondade e eu vi... seu amor por mim não tinha limites. Passei de menino rejeitado para ser Sony Salomão, filho do melhor policial do mundo, irmão de um garoto incrível e filho da melhor mãe do mundo.

Meu irmão...ele me defendeu das pessoas que me olhavam com nojo, me ensinou a me defender contra o racismo, me impor perante aos abusos e me apresentou a menina mais linda que já tinha visto.

Oi Roger! — Ela gritou quando nos viu chegando e se aproxima correndo. — Quem é o seu amigo?

— Ei menina maluca! Esse é o meu irmãozinho Sony, irmão essa é a menina que temos que cuidar seu nome é Vivian. Acho que vocês vão para a mesma escola.

— Oi Sony! Não acredita em tudo o que ele fala de mim, a maioria é exagero. — Ela diz e cai na risada.

Eu nunca tinha visto nada tão lindo antes...

Anos depois...

— Você e a Vivian estão namorando? — Meu irmão pergunta.

— Não! Quem te falou isso?

— Ninguém falou, só acho estranho que você não gosta quando ela fala com os outros meninos. Isso é coisa de namorados. — Ele disse rindo.

— Nada disso, é só que os meninos podem ser muito babacas as vezes. Só estou cuidando dela, não foi isso que o papai pediu para fazer?

— Papai gosta muito dela, ele sempre diz que ela é um tornado e que vai se meter em muita encrenca.

Mais alguns anos se passam...

Tudo vai acabar bem, ele se foi, mas vai cuidar de você lá de cima. — Ela diz me abraçando apertado.

Perder meu pai foi uma das coisas que mais doeu, mais ainda do que sentir fome, de ser humilhado.

Ela sempre esteve do nosso lado, mesmo quando eu e meu irmão brigava. Vivian ficava igual barata tonta para que fizéssemos as pazes. Às vezes eu achava que ela gostava de mim, em outras que ela gostava do meu irmão e sempre era essa última que dominava minha mente.
Nossa amizade sempre foi preciosa, mas tudo acabou quando ficamos juntos a primeira vez...

Agora ela se tornou uma parte de um passado onde fui de não ter nada há ter tudo, para em seguida perder novamente. Tive um gostinho de me sentir o melhor homem do mundo, para em seguida lembrar que não era merecedor.

Vivian Olegário passou de minha mulher para ser o meu estigma ... uma marca permanente em meu coração e na minha alma.

Meu estigma (RETIRADA DIA 22/07)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora