Zoe morreu de novo

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"Até que a morte nos separe"

Ou nos una.

Diferente do que as pessoas acreditam eu não mato ninguém, quando eu chego elas já estão mortas. Não existe, aqui, uma entidade superior que determina quando ou como sua vida encerra. Não existe, além, céu ou inferno, nem evolução ou reencarnação.

Morrer é muito mais trivial do que os mortais gostariam que fosse. É somente e tão somente o fim de um ciclo. A essência de todo ser vivo tem seu prazo de validade determinado de maneira completamente aleatória. Sim, o universo é isso: uma porção de dados rolados ao acaso. Se a validade expira é o seu fim. Acabou. Sua essência chama quem tiver que chamar e a esmagadora maioria chama meu nome. Eu sou Amaia, A Morte.

Agora, diante da Primeira Bruxa, tudo o que consigo pensar é em seu monólogo sobre universo holístico. Ela realmente acredita que as coisas só fazem sentido se a gente olhar para o todo. Acontece que o todo nos é invisível porque o mundo não para, os ciclos engatam um no outro feito uma corrente que serpenteia infinitamente.

Tenho me sentido tentada a acreditar nessa visão, seria útil para explicar porque poupei Zoe tantas vezes, sem nunca explicar nada de fato.

Mas agora estou pensando em quão rápido Alma ficará sabendo e a partir daí quão rápido até Anastasia saber também. O fim de um ciclo. Não terei outra oportunidade com Zoe e isso me arremessa para o passado, algo parecido com o que as pessoas dizem sobre o filme que passa diante de seus olhos quando você está prestes a morrer. E por saber que continuarei vivendo, assisto pacientemente as memórias que brotam sem anúncio, voltando para onde tudo começou.

A primeira vez que a vi, ela não chamou por ninguém. Não tinha porque chamar, era uma criaturinha corada e cheia de vida, mesmo que o carro onde se encontrasse fosse somente um amontoado disforme de metal. Lá de dentro ela me fitava com imensos olhos azuis e cabelos cor de pérola.

Isso mesmo, seus olhos cristalinos cravados no negrume de minha esclera. Tinha quatro anos e não se abalou, não chorou, não esboçou nenhuma surpresa ou espanto.

Ninguém mais apareceu, não haveria milagre ou ressuscitação. A matemática era simples: três pessoas, duas essências e eu. Eu devia ter ido direto para Alma, mas a curiosidade matou o gato. Aquilo nunca tinha acontecido antes, era impossível que ela me visse e mesmo assim ela me viu, era impossível que ela me tocasse e mesmo assim, quando estendi a mão ossuda e comprida sua pele ardeu na minha. Acredito que tenha sido exatamente ali que tudo mudou. Talvez isso tenha transferido uma parte de sua essência para esse limbo onde ninguém nem sabia que era possível estar. Um lugar onde a essência dela era capaz de me chamar antes mesmo de morrer.

Foi como a encontrei da segunda vez e não foi bonito. A pele murcha, os cabelos translúcidos ondulando na água turva de sangue.

— O que você fez? — perguntei mais para mim mesma do que para ela. Essências não se comunicam, são uma espécie de HD armazenando memórias de toda uma vida sem qualquer possibilidade de se reconectar.

Mas então ela estreitou os olhos e me viu. De novo.

No susto toquei seus lábios, nossos corpos igualmente gélidos, pequenas agulhas de gelo causando um incômodo formigamento em minha pele. Meus dedos literalmente empurrando o chamado de volta para dentro da boca dela.

Sem saber o que poderia ser feito desapareci no ar e imaginei todos as variáveis que pudessem ter levado aquilo a acontecer.

Quando a encontrei pela terceira vez decidi esperar por Nessa, a operadora de milagres, mas ninguém apareceu. Seus lábios ainda estavam mornos e foi como tocar espuma do mar.

A quarta vez foi completamente inusitada, primeiro porque ela não tentava provocar a própria partida, segundo porque descobriu da pior maneira uma infestação de vampiros na Terra e por último, mas não menos impressionante, ela me chamou antes mesmo de de ficar inconsciente.

Eu soube, no momento em que passei pela porta que ela forçava os olhos abertos para me ver. Zoe sabia que eu estava indo até ela, sabia que estava prestes a quase morrer. De novo. Já conhecia meu modus operandi e me esperou. Usou a última lufada de ar disponível para dizer "oi" e fechou os olhos provavelmente sem conhecimento do pequeno sorriso que se formou no canto esquerdo da minha boca.

Vampiros são criaturas cuja a essência foi barganhada através de rituais praticados por seres "não convencionais". Sem essência não há meios simples de exterminá-los. É por isso que os vejo feito ervas daninhas: se replicando sem controle ou utilidade.

É sabido também que eles atrapalham um bocado o meu trabalho. Consomem a essência de um humano sugando-lhes todo o sangue, quando chego já é tarde demais. Mas não dessa vez.

Um deles me encara em absoluto pânico, posso não ser tão aterrorizante quanto os humanos pensam que sou, mas tenho presença o suficiente para intimidar os desavisados.

Qual foi minha felicidade ao perceber que os peguei no momento no qual tenho plena vantagem: estão mortos e vagamente preenchidos com a essência de Zoe, o suficiente para que eu possa colocar um fim no ciclo de cada um dos três.

Ela tinha os braços acorrentados, os pulsos carregando cicatrizes demais e sua cabeça pendendo para o lado com um fio de sangue que escorria de cada perfuração. Não sei o que ela pretendia, talvez estivesse aliviada em acreditar que finalmente morreria, descansaria, porque as estrelas bem sabem o quanto ela já tentou partir antes.

Mas como das outras vezes ela não estava morta ainda.

Tentei soltar as correntes completamente alheia ao fato de que éramos de esferas diferentes. Duas criaturas coexistindo em espectros opostos do universo. Na impossibilidade de interagir com o campo fisico dela, só me restou devolver seu chamado e partir.

Existe algo de excepcional na vida que é de difícil entendimento para a maioria dos seres mortais: a mera possibilidade de morrer. É isso o que deveria tornar tudo mais intenso, tornar a jornada uma aventura.

Os humanos em geral são os que menos fazem uso dessa vantagem. Penso em Zoe e em seu desespero contínuo de buscar um fim para o que quer que fosse que a tivesse afastando da própria vida. Como se a única solução para seu sofrimento naquele plano fosse me conceder o fio dourado de sua essência e desconectar-se para sempre.

Sei o que costumam falar desses seres: egoístas e covardes. Eu já vi mortes o suficiente para saber que é preciso coragem para chegar numa atitude tão drástica. Mas não cabe a mim defender ou acusar, na verdade pouco me interessa os motivos que faz qualquer criatura cruzar meu caminho. Acontece que todas elas cruzam uma vez só. Há algo em Zoe que me faz crer que se vamos continuar nos cruzando com frequência eu deveria estar interessada em saber mais.

O problema é que isso vai contra meu plano de manter tudo isso em segredo. Se vou atrás de informações na Terra preciso chegar lá por outros meios, preciso ser capaz de interagir naquele plano. E só há dois caminhos possíveis. Um deles é com a ajuda de goblins, criaturinhas travessas que atravessam pelas realidades roubando quinquilharias. Mas goblins não ajudam ninguém, não sem pedir absurdos em troca.

O outro meio é o que escolhi, com uma velha amiga que desde os início dos tempos vem encerrando ciclos e gerando muito trabalho para meu pobre corpo imortal.

A Primeira Bruxa.

Zoe morreu de novoWhere stories live. Discover now