Capítulo 2

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Emília

Capítulo 2
Toda sexta-feira é bem corrida no trabalho. Essa semana não foi diferente. As pessoas ficam mais relaxadas, acabam se dando um tempinho, conversam sorridentes fazem planos para o final de semana, tudo isso curtindo um bom cafezinho.
Todos os dias, saí do emprego direto para a faculdade, garantindo um tempo a mais na biblioteca, onde aproveitei para colocar meus trabalhos em ordem. É cansativo, mas chegar em casa tarde e ainda ter que passar horas na frente do computador é muito pior.
Aproveito os vinte minutos de intervalo e vou à biblioteca novamente, que está vazia hoje, dando-me a oportunidade de escolher qual computador usar.
A pesquisa é um pouco chata, com isso, tudo me distrai. Olho para os lados e reparo quando o "Reis" entra, senta na mesa a minha frente, sem olhar para nada e tira um caderno da bolsa. Concentrado, começa a rabiscar algo, parecendo ser um desenho. Às vezes, ele para, suspira com leveza e volta a traçar o papel, fazendo-o dançar em sua frente. Eu notei a presença dele durante todos esses dias, mas nunca o vi tão relaxado quanto agora; está sozinho, tranquilo em seu mundo. Aquilo, de fato, me tira totalmente a atenção do que eu deveria estar fazendo.
Absorta em seus movimentos, assusto-me ao ouvir uma voz grossa chamar a atenção de Bruno.
— Senhor Reis, como vai?
O reitor para ao seu lado com um sorriso cordial. Bruno se levanta e estende a mão, que é imediatamente aceita. Seu semblante é sério, porém gentil.
— Muito bem! E o senhor? Sua família? — Pergunta Bruno.
— Estamos bem, obrigado! Soube do seu retorno, agora, espero que em definitivo.
— Sim, ficarei até o fim. — Bruno explica.
— Me alegro em saber. Bem-vindo novamente, sr. Reis! Dê lembranças minhas à sua família.
— Darei, com certeza. Até mais, senhor. — Bruno agradece com a cabeça em um gesto elegante, espera que ele cruze a porta para, só então, pegar sua bolsa na cadeira e, cruzando a biblioteca, sai sem nem olhar ao redor.
Reparo que ele não pega o caderno que antes dava tanta atenção, levanto rápido, indo até a mesa onde ele estava, confirmando que, de fato, o objeto ficou esquecido ali, resolvo, então, pegá-lo, guardando-o em minha mochila, com o intuito de devolvê-lo ao dono o mais breve possível.
Com a aula monótona, o tempo demora a passar; tento me distrair e esquecer a curiosidade que estou sentindo, pois essa não costuma ser uma característica minha. Entretanto, não posso negar que tentar entender um pouco da cabeça daquele moço tão misterioso, que faz fama nos corredores há dias, é muito tentador. Seguro firme a mochila surrada, tentando protegê-la de mim mesma.— Minha consciência me alerta.
Sinto um toque leve em meu braço, trazendo-me de volta à realidade, levanto o olhar para Felipe, que me fita com seus olhos azuis por baixo dos óculos, que lhe dão uma aparência meiga.
— Tudo bem, Emma?
— Sim. — Inclino meu corpo para me aproximar dele e não falar tão alto. — Estava só pensativa.
— Você fez a entrevista no ateliê? — murmura.
— Ainda não, está agendada para sábado.
— Com a Flávia?
— Isso mesmo.
— Ela é legal. Tenta não ficar nervosa, tenho certeza que vai dar certo e logo estaremos trabalhando juntos. — Ele dá um leve aperto em meu braço, passando-me confiança.
— Espero mesmo, Lipe. Seria uma grande oportunidade!
— Olha, se você deixar... hum... eu posso dar uma força. Não vou fazer muito só comentar que te conheço e tal...
— Não, Lipe. Por favor, não! É minha primeira entrevista e quero ter a certeza de que fiz tudo sozinha.
— Tá bom. Mas conta como foi assim que sair de lá.
Concordo com um sorriso.
— Prometo! Você estará no ateliê?
— Não. Só a parte de vendas trabalha aos sábado. Por isso fazem as entrevistas nesse dia, para ter tranqüilidade na avaliação do candidato.
— Entendi. Valeu pela torcida!
Ele me dá um sorriso carinhoso e volta a olhar para frente.
Volto a ficar sozinha, ou melhor, com a minha curiosidade. Puxo o zíper e enfio uma das mãos para pegar o meu caderno, mas o de Bruno acaba vindo junto, coloco-o sobre a mesa e fico encarando a capa preta.
Ai, que se dane!
Abro rápido, como se a velocidade fosse diminuir minha culpa, aspiro o ar e solto pesado.
Caramba!
Ocupando a página toda, um lindo cavalo, feito a grafite, parece emergir.
O formato das patas dianteiras cruzadas e a crina toda jogada para o lado trazem a sensação de que ele está correndo, uma mancha branca entre os olhos é a única coisa que não está pintada. Curiosa, viro mais uma página.
Desta vez é uma moça, seu rosto parcialmente de lado. Cabelos presos em um coque alto, alguns fios soltos estão tão bem traçados que parecem reais, a lateral do rosto com o contorno certeiro da bochecha, os cílios baixos e um pouco do nariz e lábios, o desenho termina no pescoço.
É lindo!
Porém, a moça parece um pouco solitária.
Pergunto-me por que esconder esses desenhos.
Do que será que ele tem vergonha?
Sinto que invadi muito a sua privacidade. Guardo o caderno envergonhada, mas não arrependida. Ele é sensível, um artista.
Gostei disso!
A aula termina e eu saio apressada, procurando por ele em cada rosto, aflita para lhe entregar o caderno o quanto antes. Infelizmente, não o encontro. Tenho a ideia de esperar por ele no estacionamento, afinal, Reis não vai embora a pé. Bruno estacionou a moto no mesmo lugar todos os dias; hoje, não foi diferente, fico esperando ao lado dela.
Poucos minutos depois, ele desponta no alto da escada. Não sei o porquê, mas meu estômago se revirou de nervosismo. Respiro fundo para manter o controle. Talvez seja culpa.
Parando do outro lado da moto, ele não repara em mim. Pega o capacete e sei que, se não fizer algo agora, ele vai embora. Não quero passar a noite com esse caderno sob minha responsabilidade.
Pensa, Emma! O que fazer?
Pego o caderno na mochila, me aproximo e estico o braço, mostrando o caderno a ele.
— É seu? — Pergunto, enquanto ele parece analisar a situação.
— Onde você achou isso? — Reis me olha preocupado.
— Você esqueceu na biblioteca mais cedo.
Bruno o recebe com delicadeza. Seus olhos levemente cerrados, como se houvesse alguma dúvida.
— O que você fez com ele durante esse tempo, senhorita?
Inclino o pescoço, enquanto tento entender a pergunta.
— Como assim? O que eu poderia fazer com um caderno usado?
— Mostrá-lo as suas amigas.
— Hmm... Eu nem olhei. Guardei direto na mochila e só tirei agora.
— Está me dizendo que não abriu? Não teve curiosidade? — Ele espreme mais ainda o olhar.
— Estou. Olha, relaxa! Eu não mostrei pra ninguém — dou um sorriso amarelo — e nem olhei. — Fico vermelha de vergonha. Odeio mentira! Ele parece ter acreditado, pois abre um sorriso, causando-me mais culpa ainda.
— Como se chama, senhorita?
— Emma. — Respondo, estendendo-lhe a mão em cumprimento.
— Sou Bruno. — Aceita minha mão, dando um aperto firme. Assinto como se não soubesse. Reparo que seus olhos são claros. Sua íris expande, enquanto o sorriso perde força. Respiro fundo dando um passo para trás.
Solto sua mão e procuro meu celular, preciso saber as horas; bato as mãos nos bolsos, encontrando-o. Meu próximo ônibus está para sair, não posso perdê-lo.
— Bom, o seu caderno está entregue. — Guardo o celular no bolso, dando outro passo. — Já vou indo, não posso perder meu ônibus. — Aceno, enquanto me afasto.
— Vai de ônibus, senhorita?
— Aham, sim. Sou um ser humano não motorizado. — Brinco, sem muito sucesso, já que ele não ri e fica apenas me olhando.
— Eu te levo. Será um prazer retribuir o favor.
— Não precisa retribuir — nego com a mão —, não fiz nada demais. Obrigada! — Volto a acenar e saio com pressa. Quase correndo para chegar a tempo.
Puxo fundo o ar, tentando controlar minha respiração um pouco cansada, sento no banco e, antes que meu ônibus chegue, ouço o ronco alto da moto saindo acelerada; vejo Bruno indo embora.

Me perco em você Where stories live. Discover now