Angelus

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Houve um tempo em que anjos foram enviados à Terra.

Cerca de vinte deles caíram nesse planeta com a missão de cuidar para que os humanos vivessem em paz e não houvessem guerras entre as nações, coroando tempos pacíficos aos quatro cantos do mundo.

Era comum vê-los andando por aí, asas celestiais resguardadas, cabelos encaracolados brilhantes e auréolas circundando a composição divina. Vagavam pelos continentes, levando mensagens de esperança e fé durante os bons tempos; faziam graça para crianças, riam com senhorinhas bem-humoradas e jogavam xadrez nas praças, enquanto conversavam sobre a vida e o Paraíso.

Assim, por séculos, nossa raça viveu em harmonia graças aos mensageiros dos céus. No entanto, algo mudou em algum ponto.

Angelus foi um dos últimos emissários. Contam as lendas que, quando seus pés místicos tocaram nossas terras, desastres naturais assolaram o clima mundial. Chuvas torrenciais nas Américas, geadas na Europa, tsunamis em partes da Ásia... um caos em escala global.

Os anjos que habitavam aqui, temendo o pior, pediram ao seu Senhor que o chamasse de volta, todavia, os clamores não foram atendidos; Angelus continuou entre os humanos. As más línguas afirmam com propriedade sobre o caráter duvidoso do anjo de cabelos escuros e feições carrancudas. Há quem diga que nunca ouviram o som de sua risada ou um mínimo sorriso bordado nos lábios escarlate. Mas não acredite nos boatos, afinal de contas, ninguém conheceu a verdadeira face de Angelus.

Ele foi um bom anjo. Interceptou embates entre líderes egoístas, deu comida a quem tinha fome, um lar a desabrigados, viajou o mundo atrás de solução às adversidades humanas; tudo isso, até ser capturado por John Every.

O mundo não era o mesmo quando o pirata deu início ao seu reinado larápio e sanguinário sobre os sete mares: embates entre anjos e humanos que escolhiam o lado mau da existência eram recorrentes e, aproveitando a deixa, Every e a tripulação de seu navio negro, o grande Ares, plantaram o medo no coração dos navegadores.

Na época, era cotidiano ouvir-se falar sobre saqueamentos às embarcações contratadas para exploração e transporte de ouro e especiarias, ainda assim, nada grandioso quanto os atos profanos de Every e seus gatunos – que, além dos furtos, derramavam sangue inocente.

Aconteceu que Angelus, na tentativa de barrar os piratas, acabou preso por John Every. Encularrado no convés sujo de Ares pela espada afiada do capitão, observado com diversão pelos mandados do homem asqueroso.

Every feriu gravemente suas asas alvas, impedindo a fuga de Angelus pelos céus. O anjo, naquele dia, sentiu-se fraco pela primeira vez em milênios, a força escorrendo junto ao líquido carmesim que pingava da ferida aberta.

Existem muitas versões sobre o aconteceu após o ataque ao ser celeste. Algumas contam que Angelus tentou estancar o sangue e desmaiou um tempo depois, outras, que o anjo ameaçou fugir, mesmo ferido, e não conseguiu – cercado por todas as partes pelos criminosos do mar. Em contrapartida, mesmo com diferentes cursos de história, o final sempre é o mesmo: ele acaba preso no porão insalubre do navio pirata.

Reza a lenda que, após sapatear a cela imunda em busca de uma saída, Angelus aceitou seu fracasso; fez uma prece para o Senhor e se desculpou pelo erro de enfrentar aquilo sozinho, sem ajuda dos colegas. Os humanos eram difíceis de lidar às vezes, principalmente os que seguiam o rumo pernicioso da vida, como John Every e sua guarnição.

Uma parte sua sabia que não conseguiria escapar vivo daquele navio. Every jamais deixaria. Os olhos frios do humano jaziam tal como se o brilho da existência tivesse se extinguido deles há muitas eras. Angelus sentia que, enquanto seus milênios de vivência foram bons e direcionados ao bem-estar da raça humana, os do pirata, no entanto, tinham sido gastos em meio às trevas do mundo. Uma realidade de morte e dor – que ele próprio causava.

O anjo definhou por dias no porão pútrido, a ferida nas asas cicatrizando lentamente conforme o barco balançava por águas desconhecidas, perdido em alto-mar. A única luz que burlava a escuridão do lugar vinha de um buraco na portinhola da sala, por onde espécimes masculinas tatuadas por todo o corpo e vestidas em roupas surradas entravam a cada hora para rir do detento.

Every nunca tocou os pés ali.

Angelus não esperava que o capitão concedesse a ele a honra de sua presença, todavia, imaginou que o brutamontes aparecesse pelo menos uma vez para contemplar seu prisioneiro celestial.

O desastre ocorreu num dia qualquer.

Ele recebia mais um de seus incontáveis insultos quando uma desconhecida cruzou o corredor de sua prisão. Ela usava um vestido bordado que marcava seu corpo queimado pelo sol, cabelos dourados presos e, no braço, bem perto ao pulso, um caveira negra despontava até o ombro descoberto. Ouvi certa vez que a mulher era o próprio inferno, queimando o quarto sujo a cada passo dado em direção ao anjo e o pirata que o insultava.

A voz dela foi fria quando ordenou que o larápio os deixasse a sós; e não disse nada quando tirou um frasquinho de um bolso escondido no vestido. Angelus dava um passo para trás no cubículo imundo quanto mais próximo a mulher ficava. Então, no momento em que as asas machucadas tocaram a madeira fria e salgada, ele pediu que ela não se aproximasse mais. A pirata riu com o grunhido de dor que seguiu o clamor do prisioneiro, revelando o poder de cura do líquido guardado no vidro que tinha em mãos.

Angelus continuou encolhido no canto da cela, investigando o rosto comprido e marcado da corsária, desconfiado. Uma pontada de dor escureceu sua visão por um momento e, aproveitando-se de seu mal-estar, a mulher pingou uma gota da gosma esverdeada no buraco deixado em suas asas pela espada de John Every. De início, um formigamento tomou seu corpo, contudo, logo não sentiu mais nada. Nem uma fisgada de agonia às suas costas.

A pirata sorria satisfeita em direção ao ferimento de dias que cicatrizava com o efeito da gosma mágica quando Angelus observou de perto seus olhos escuros. Nesse instante silencioso, ele experimentou a sensação de fogo consumindo partes suas. A chama que correu seu corpo, de repente, transformou-se em um incêndio completo; e então, os fragmentos primordiais e desencontrados que sua espécie era proibida de buscar se juntaram de uma vez, construindo uma peça inteira que o fogaréu não conseguia alcançar para destruir.

E ele soube, por fim, que o abrasamento sentido ali seria a ruína lendária de anjos e humanos.

“Como era o nome dela, vovó?”

“Acali”, a velhinha respondeu.

“Então, Angelus renunciou a tudo por causa da pirata?”, a criança indagou.

“É o que dizem as lendas, minha querida. Os anjos voltaram aos céus quando isso aconteceu. Alguns dizem que poucos deles ficaram, mas a maioria foi de encontro ao seu Senhor. Os que permaneceram perderam as asas e viveram mortais como humanos até o fim da vida.”

“E o que aconteceu com Acali e Angelus?”

“Bem, existem muitas opções para o final deles”, ela começou. “Entretanto, na versão em que acredito, os dois terminam juntos, velejando pelos continentes a bordo do Ares.”

“O anjo vira pirata como o vovô?”, os olhos da menina brilharam com a possibilidade.

“Se quiser acreditar nas lendas, criança, sim. Ele sobreviveu o resto de seus dias junto à sua amada com o oceano sob seus pés.”

Angelus [CONTO]Where stories live. Discover now