CAPÍTULO 01

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Eu escolhi uma calça de malha que imitava jeans, uma blusa de manga curta branca, meias inteiramente brancas e um tênis feminino preto, tudo para demonstrar o máximo de neutralidade possível. Completei minha escolha com uma bolsa grande marfim, com um casaco e um guarda-chuva dentro, por prevenção. Sabia a ficha inteira da criança pela descrição da vaga: seis anos, intolerante a lactose, escola convencional no turno da manhã, natação às segundas e quartas, futebol às terças e quintas, inglês na sexta. O que eu mais me perguntava era qual a necessidade dos endinheirados de colocarem os filhos para fazerem mil cursos diferentes. Lucas não era a primeira criança de pais ricos de quem eu tomaria conta, mas eu quase esperava que fosse a última porque estava quase na hora de deixar os serviços simples para trás, pegar meu diploma e passar a trabalhar integralmente como arquiteta.
– Já vai, filha? – Minha mãe perguntou quando eu passei pela cozinha, o corredor no mais completo escuro ainda.
– Vou sim, pediram pra eu chegar às sete.
– Vai fazer que percurso?
– Vou pegar um ônibus até a estação de BRT. O condomínio deles é bem perto do ponto, dá pra ir andando.
– De qualquer forma, toma cuidado e me manda uma mensagem quando chegar.
– Pode deixar, mãe.
– Boa sorte. – Ela me deu um abraço e voltou para a cozinha, provavelmente estava preparando a refeição do meu irmão caçula.
O trânsito no Rio de Janeiro àquela hora já estava começando a ficar caótico, o que era incrível. O bom era que, mesmo caótico, o BRT era um ótimo meio de transporte e me permitia ficar um tempo a mais na cama. Se isso fosse antes das Olimpíadas, quando a via expressa foi inaugurada, eu provavelmente levaria mais que o dobro do tempo naquele percurso.
Por sorte, um ônibus encostou assim que eu parei na estação e eu consegui entrar rapidamente, ainda com lugar para sentar. Como lotou, dificilmente precisaria ceder meu assento para alguém, pois estava longe da porta e, até alguém que precisasse chegasse lá, passaria antes pelo preferencial. Mesmo assim, eu me mantinha atenta para saber se seria necessário.
A viagem de Realengo até a Barra da Tijuca não levou nem uma hora, o que era bem incrível para quem havia crescido na zona oeste. Eu estava tensa, mesmo que não fosse a minha primeira vez. Tinha uma carta de recomendação ótima dos meus patrões anteriores e a minha entrevista com a mãe do Lucas havia sido muito boa. Se Rebeca não gostara de mim, pelo menos era ótima em disfarçar.
Na portaria do condomínio, minha entrada já estava autorizada, o que significava que aguardavam por mim. Enquanto eu cumprimentava o porteiro e o mesmo me desejava boa sorte no novo serviço como se já me conhecesse, uma Mercedes saiu arrancando pela porta da garagem. Observei o motorista irritadinho desaparecer entre os demais carros e entrei no hall do prédio. O elevador levou cerca de trinta segundos para chegar. Ao entrar, apertei o botão para o décimo oitavo andar. O impulso para subir foi tão grande que chegou a me dar enjoo mas, só de pensar na quantidade de degraus que teria que subir para chegar até o apartamento desejado, meu medo desaparecia.
Quando o visor logo acima da porta indicou que estava quase chegando ao meu destino, olhei para o grande espelho e chequei meu visual. Não gostava de estar de cara limpa, então coloquei um delineado bem discreto nos olhos e caprichei no rímel e lápis de olho. Achei que, assim, poderia agradar melhor, já que os padrões daquele tipo de gente provavelmente não permitiriam me aceitar 'naturalmente'. Verificando que estava tudo em ordem, saí do elevador. Havia apenas duas portas que davam para o hall do andar, uma com a placa 'serviço' escrita logo acima dela. No entanto, não havia campainha ali, então optei pela outra porta.
– Bom dia, Diana! – Rebeca me recebeu, aparentemente já arrumada para sair. – Chegou cedo, bom que posso sair mais cedo também. Fez boa viagem?
– Fiz sim, dona Rebeca, bom dia.
– Ah, quê isso de dona Rebeca. Pode me chamar só de Rebeca, fica tranquila.
– Ok, obrigada.
– Agora tem alguém que eu gostaria que você conhecesse... – Ela foi até a entrada para um corredor enquanto eu fiquei parada ainda bem próxima da porta. – Lucas, vem cá, a mamãe já vai sair.
Rebeca olhou para mim e sorriu simpaticamente. Em alguns segundos, uma criança loira saiu de lá com metade do uniforme vestido. Virou-se para mim e abriu um sorriso, balançando a mão em um cumprimento cheio de vergonha por estar na frente de uma pessoa nova.
– Lucas, essa é a Diana, ela vai cuidar de você no lugar da Aline a partir de agora, como a gente já tinha conversado. Tudo bem, filho?
A criança fez que sim. Rebeca abaixou na altura de Lucas, deu um beijo na sua bochecha e, ao se levantar, pegou uma bolsa que estava em cima da mesa.
– Tudo o que você precisa saber tá naqueles papeis que eu te entreguei. Se precisar de qualquer coisa, me liga. A Glória, governanta, vai chegar daqui a pouco, ela precisou se atrasar por motivos particulares hoje. Sua cópia da chave é essa. – Rebeca falou e deixou um molho na minha mão. – Já te passei a senha do aplicativo do Uber, certo?
– Passou sim. – Eu respondi e assenti simultaneamente.
– E o colégio do Lucas é o...
– Saint John.
– Ótimo, você é maravilhosa! – Ela se aproximou de mim e deu um beijo espontâneo na lateral do meu rosto. – Assim que eu sair da reunião, venho pra gente conversar melhor. Tem comida na geladeira, pode pegar o que quiser. Obrigada, mais uma vez, por vir tão rápido.
– Sem problemas, dona Rebeca.
– Só Rebeca, não esqueça. E sinta-se em casa. – Ela disse com outro sorriso simpático e fechou a porta, deixando eu e Lucas para o lado de dentro.
Respirei fundo e pedi aos céus para que tudo desse certo. Quando me virei, ele estava no mesmo lugar.
– E aí, Lucas? Tudo bem? – Tentei interagir.
– Tudo sim. – Ele respondeu rápido e extremamente educado.
– Por que você não termina de colocar seu uniforme? Vamos sair pra te levar pra escola já já.
Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça e voltou para dentro do corredor. Isso me deu tempo para dar uma checada no visual do lugar. A sala era enorme e era o primeiro cômodo, possuindo uma porta gigante de vidro que dava para uma varanda fechada. Os móveis pareciam caríssimos. Na estante, diversos retratos de Lucas, Rebeca e seu esposo, Diego. Carlos o venerava, mas eu não era muito ligada em futebol. Assistia e torcia. Sabia que ele jogava bem e tudo mais, mas era mais contida como torcedora. Eu tinha uma tarefa dificílima em tentar conter sua animação com o fato de eu estar trabalhando para um de seus maiores ídolos.
– Estou pronto, tia Diana. – O pequeno surgiu de volta.
– Então vamos? – Ofereci a mão para ele. – E pode chamar só de tia Di. Você gostaria que eu te chamasse de algum jeito ou só de Lucas?
– Eu gosto de Luquinhas, papai me chama assim.
– Então tá, Luquinhas. Vamos?
O trajeto para o colégio foi tranquilo e, logo, eu estava de volta. Abri a porta principal depois de testar algumas chaves. Do lado de dentro, havia o som de mais alguém. Deixei minha bolsa em um cabideiro próximo à porta e fui caminhando na direção do som até acabar na cozinha, que era uma das maiores que eu tinha visto na vida. Uma senhora estava separando alguns ingredientes, de costas para mim.
– Bom dia. – Falei, e ela se virou imediatamente.
– Ah, bom dia! Você deve ser a Diana, certo?
– Isso mesmo. E a senhora é a Glória?
– Sim, isso, muito prazer. – Ela disse e me cumprimentou com um abraço. – Dona Rebeca falou que você viria hoje. Espero que você tenha sorte aqui.
– Sorte?! – Perguntei.
– Ah, querida, sabe como é... O dinheiro não compra felicidade, entende?
Eu assenti e assisti a senhora se afastar, voltando ao que estava fazendo.
– Posso ajudar, dona Glória?
– Nenhuma das babás anteriores do Lucas se ofereceram, então já gosto de você. – Ela disse, sorridente. – Pode sim, por favor. Pegue uma espátula de silicone na segunda gaveta e uma bacia de inox na porta à direita das gavetas e traga pra mim.
– Sim, senhora.
Como me conhecia bem, coloquei um despertador para o horário de buscar Lucas na escola. Ele saiu de lá sorridente, com uma folha A4 em mãos com um desenho que ele jurava ser um carro de fórmula 1 – mas eu acho que estava mais para um carrinho de mão. A professora de natação dele estava com o próprio filho no hospital e, por isso, sua aula da tarde foi cancelada, o que nos rendeu algumas horas em casa. As recomendações expressas para que ele não passasse mais de trinta minutos seguidos ou uma hora por dia no videogame me fizeram pensar que ele seria insistente, mas foi só falar que ele deixou o console no sofá e, sem dizer nada, foi brincar com alguns carrinhos miniatura.
Lucas era um ótimo anfitrião, devo dizer. Ele fez questão de me mostrar a casa toda, até mesmo o quarto dos pais, que eu neguei e disse a ele que não deveria entrar porque eu era uma visita. Pareceu entender, mas talvez fosse informação demais para a mente de um menininho de seis anos. Quase na hora da sua mãe voltar, ele pediu para ver um filme e eu perguntei se ele já havia visto 'Dinossauro'. Com uma resposta negativa, fiz um resumo e Lucas animou. Achei o filme na internet mas, com menos de dez minutos, ele dormiu. Fiquei aguardando no sofá enquanto Rebeca não chegava até que escutei uma chave girando na fechadura principal. Comecei a levantar devagar do sofá para não acordar Lucas, mas quem eu encontrei não era quem eu esperava.
– Opa! – Diego, o marido de Rebeca e pai de Lucas, ofereceu a mão para um cumprimento. – Boa tarde. Diane?
– Boa tarde. Diana, na verdade. – Falei em tom baixo.
Diego checou por cima do meu ombro e viu o filho adormecido no sofá.
– Peço desculpas pelo engano então, vou procurar me lembrar. Ele se comportou? Deu tudo certo hoje?
– Deu sim, senhor. Ele só não teve natação, a dona Rebeca mandou mensagem avisando que não precisava levar porque a professora teve uma emergência.
– Tudo bem. – Ele checou o relógio, parecia caro. – Acho que já deu seu horário.
– Sua esposa pediu pra que eu esperasse por ela, pra acertarmos alguns detalhes.
– Pode ir pra casa, eu resolvo com ela. Se você esperar mais, o trânsito vai ficar um inferno e você não chega ainda hoje.
– O senhor tem certeza? Ela não vai ficar chateada?
– Fica tranquila, eu vejo isso. Vocês terão tempo depois pra falar sobre tudo o que precisarem.
Eu hesitei, mas realmente já havia passado do meu horário e eu estava já bem preocupada com a lotação do BRT. Só queria mesmo era causar uma boa impressão no meu primeiro dia.
– Tudo bem então, eu agradeço.
– Que isso, não tem de quê! Até amanhã.
– Até. – Eu respondi com um sorriso, peguei minha bolsa no cabideiro e saí pela porta que ele havia mantido aberta.
No caminho para casa, mandei mensagem para minha mãe, informando onde estava e quanto tempo deveria levar. Chequei meus e-mails e havia um informe da faculdade, avisando que o sistema ficaria fora do ar e que os alunos da modalidade de ensino à distância – como era o meu caso – não teriam acesso às aulas por setenta e seis horas. Eu estava atrasada com meu conteúdo, mas acabaria recebendo uma folga forçada. Seria bom, de qualquer forma. Ao menos eu poderia ter tempo para me acostumar com a nova rotina, mesmo que pouco, e usaria o que me sobrasse para adiantar alguns serviços que eu havia conseguido como free lancer.
A faculdade de Arquitetura e Urbanismo estava me comendo, essa era a verdade, mas o divórcio dos meus pais não tinha sido nada amigável e tudo estava correndo na justiça ainda, deixando minha mãe com a pensão do meu avô, falecido militar, para sustentar os dois filhos e ela mesma. Com sorte, eu consegui uma boa bolsa por conta das notas da faculdade e estava conseguindo pagar uma parte das contas com o que recebia de salário. No caminho para casa, eu só pensava em quando aquilo ia acabar e nós poderíamos nos ver livres daquela situação toda.

Só Essa NoiteWhere stories live. Discover now