Capítulo 3

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Quando entro no carro pra começar o exame o instrutor de meia idade já está lá com uma prancheta e uma cara de julgador

— Sou Marcos, seu instrutor, e você está atrasada — ele diz sem nem olhar pra minha cara enquanto ajeita seus óculos e anota algo na prancheta

— Eu sei, tive um imprevisto, mas agora eu tô aqui — tentei mostrar meu melhor sorriso e ele simplesmente revira os olhos — é que eu tive um dia péssimo...

— Não tenho interesse na sua vida pessoal

— Meu namorado me traiu — continuo com uma vontade de desabafar e talvez fazer com que ele tenha pena de mim — minha luz acabou, eu não tinha dinheiro para o ônibus então adivinha com quem eu vim, sim, com meu ex que me traiu há umas horas

Coloco o cinto, olho os espelhos e dou a partida sem parar de falar

— O pior que ele me traiu com minha melhor amiga, você acredita? Eu conheço ela há anos e ela que me apresentou ele, sim, uma falsa — continuo seguindo o caminho com o carro enquanto a raiva me domina

Sigo pela estrada enquanto dou a volta pelo quarteirão

— Os dois, com aquelas carinhas de santos me esfaquearam pelas costas, eu tava planejando um jantar... E ele... Bom ele... Olha ele ali — quanto digo isso já estou aos prantos com uma cara de doida com ódio

Vejo Matheus em uma barraquinha de churros comprando um com doce de leite

Nesse momento eu simplesmente não sei o que passa na minha cabeça, eu pressiono o acelerador e parto pra cima dele

O grito do instrutor é como um sussurro nos meus ouvidos, eu só consigo ouvir meus gritos internos causados pela dor da traição.

Volto pra realidade e saio do carro correndo quando me toco do que fiz

— Matheus!

Lá está ele, espatifado no chão, eu nem consigo olhar diretamente pra ele. Viro de costas em desespero e começo a chorar

— VOCÊ É MALUCA!? — o instrutor exclama ofegante com os óculos bagunçados mas eu ignoro

— O que eu fiz? O que eu fiz?... — repito inúmeras vezes

— Alguém chama o médico! — Marcos diz e o moço do churros, que está completamente assustando, pega o telefone e liga para o samu

O resto dos minutos que o samu demora pra chegar passam como um borrão.

...

— Moça! Moça! — Pisco e me vejo na ambulância com um paramédico me chamando - Você tem alguma relação com ele?

— Eu sou... Bom... Eu sou ex dele — digo gaguejando - foi um acidente...

— Preciso que ligue para os parentes dele, por favor — ele me dá um pouco de água e sai de perto

Ligo pra mãe do Matheus, no telefone noto que ela se desespera rapidamente logo diz que já está indo para o hospital

Enquanto ainda estamos na van os olhos de Matheus se abrem lentamente e eu solto um suspiro aliviado, agradecendo silenciosamente a Deus por ele não estar morto.

— Oi — digo sem cerimônias e com muita vergonha — desculpa.

Lentamente seu olhar volta para mim e com muito esforço ele mostra um sorriso reconfortante.

— Nada disso teria acontecido se eu não fosse um babaca, tá tudo bem, acho que não quebrei nada mais que um braço

Seguimos o caminho em silêncio e poucas trocas de olhares, quando chegamos no hospital me certifico se não tive nenhum problema em relação ao atropelamento e dou uma última olhada na situação de Matheus antes que a mãe dele chegue e descubra que eu o atropelei.

...

No caminho pra casa só penso em chorar, chorar e chorar. Minha mente está em um mix de emoções, fala sério, eu atropelei alguém! Alguém que eu não tive tempo de deixar de amar.

Demoro pra chegar em casa, mas quando finalmente chego, a chuva volta. A única sorte que tive no dia foi que eu cheguei antes de voltar a chover.

Entro em casa correndo, quando abro a porta minha mãe está sorridente cantarolando terminando de por cobertura em um bolo gigante na mesa.

O cheiro de lar me traz um pouco de tranquilidade, ver minha mãe feliz por achar que eu passei na prova causa um leve aperto no meu coração.

Eu não sei se passei, mas acredito que atropelar alguém dê reprovação direta.

— Ei! Você não deveria estar aqui - ela fala antes de se virar e ver minha situação — o que aconteceu?

— Obrigada pela ótima recepção mãe — digo irônica e sua expressão suaviza — desculpa, meu dia foi péssimo... o que é isso? — aponto para o bolo

— Era pra comemorar sua aprovação mas sinto que vai ser um bolo de consolo. Vem aqui — ela senta no sofá

— Eu realmente não tô afim de conversar mãe — digo antes de lembrar de tudo, então meus olhos enchem de lágrimas.

Minha mãe não diz nada, só demostra uma expressão compreensiva e eu devolvo um olhar de agradecimento.

— Pelo menos a luz e o chuveiro estão consertados — tento mostrar um sorriso.

Subo correndo para o sótão e choro, simplesmente deixo as lágrimas descerem enquanto vejo as coisas que eram do meu pai

- Se você tivesse aqui tudo seria mais fácil - digo olhando para o livro de fotos dele que peguei na caixa - você teria quebrado o Matheus - ri - Mas você também me deixou...

Olho para o espelho velho ao meu lado e vejo minha aparência terrível

- Hoje é o pior dia da minha vida! - digo e taco o livro no espelho que quebra, e depois de alguns segundos vejo uma sombra preta me puxando

Grito minha mãe mas já é tarde demais.

O Outro Lado Do EspelhoOnde histórias criam vida. Descubra agora