Capítulo Único

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[N/A: eu gostaria de reclamar que fiz tudo isso no celular, então deve estar uma porcaria. Boa leitura.]


Ele costumava esconder-se por trás do próprio silêncio quando questionado; era um comportamento que entregava sua timidez para qualquer observador ao seu redor, embora não houvesse muitos para perceber a entonação trêmula de sua voz após ser mencionado em um assunto banal. Edgar preferia manter esta posição inferior em relação aos demais para não ter de lidar com atenção indesejada. No entanto, esse comportamento típico de Poe desaparecia de vista quando este encontrava-se do lado de Ranpo, cujo ele se referia como um rival — apesar de estar claro para a maioria que rivalidade era um termo usado para distorcer a verdade entre eles — e o próprio Ranpo, tão notável quanto qualquer outro, sequer percebia o apelido que recebera, apenas aceitava e o arrastava para cantos dispersos para comprar besteiras. Ranpo não dava importância para estes detalhes fúteis: havia casos para serem resolvidos, sua atenção deveria estar completamente direcionada a eles em vez disso.
Mas não era. Diferente do que pensam, entretanto, Ranpo desperdiçou horas de seus dias pensando nesses detalhes misteriosos apresentados pelo dito rival. Ele notou o apelido, o tratamento, a extroversão desconhecida por terceiros e, principalmente, o olhar estranho de Poe. Edgar tinha um olhar mais profundo para tudo e qualquer assunto; seja romances e poesias, seja casos sob os cuidados da polícia japonesa; até mesmo Karl recebia aquele olhar notavelmente intimidador de Poe. Ranpo, porém, não pôde ignorar a maneira como seu colega — ousava chamar em segredo como amigo, mas Poe certamente ficaria envergonhado por isto — observava-o. Quando silencioso, Edgar estava absorto em pensamentos ordinários, mas envolvendo Ranpo, ele sabia que esses pensamentos não eram tão fáceis de entender. Via nos olhos do outro quão especiais eles eram para Poe, o que despertou curiosidade em Ranpo eventualmente, pois nada além de Karl e os romances tomavam uma posição superior na vida de Poe. Isto era, no mínimo, inquietante.
Cansado de observá-lo à distância, Ranpo levantou da cadeira em que estava apoiado para apreciar de perto o brilho misterioso que iluminava o semblante do maior. Karl estava cochilando sobre o colo de Poe, o qual permaneceu imóvel no chão com o corpo encolhido contra a parede, olhando para os demais membros da agência andarem de um lado para o outro aleatoriamente. A aproximação repentina de Ranpo o assustou. Ele inclinou a cabeça para encarar Ranpo.
— Ranpo-kun? — suavemente soltou por baixo da respiração ofegante. O peito de Poe movia de acordo com a expressão empalidecida; ele estremeceu e enrijeceu o corpo.
— Por que está sentado no chão? Há várias cadeiras sobrando. — Poe balançou os ombros e voltou a distrair-se com os vultos cambaleando no salão. Ranpo comprimiu os lábios. — Estou indo lanchar. Quer ser minha companhia?
Ele espiou os demais antes de levantar. Karl resmungou por ter sido desperto. Por fim, iniciaram uma caminhada curta e silenciosa para o estabelecimento preferido de Ranpo. As pessoas que cruzavam o caminho deles baixavam a cabeça ou desviavam o olhar após encontrarem Poe; nada fora do comum para eles, mas Edogawa passou a reparar na maneira como as feições alteraram de alegres para desconfortáveis facilmente ante sua presença. Questionou em silêncio por que ficavam tão incomodados. Poe era uma boa pessoa, apesar de tudo, ele não planejava ferir ninguém.
O tilintar do sino sobre a porta anunciou a entrada dos dois. Observando as mesas, Poe suspirou em alívio por não encontrar nenhum conhecido; Ranpo o observava de soslaio.
— A mesa de sempre, Ranpo-san? — a garçonete perguntou enquanto formava um sorriso acolhedor. Ela ignorou completamente a presença do maior.
— É, pode ser — suspirou.
Ela os acompanhou para sentar na mesa mais isolada, situada próxima de uma das janelas no fundo do restaurante. Anotou os pedidos, olhou para Poe por alguns segundos e retirou-se. Ranpo apoiou os braços sobre a mesa. Karl ficou escondido debaixo da cadeira de seu companheiro.
— Então... — Começou a falar. Poe recostou a coluna na cadeira e o encarou. — Está preparando algo novo para mim? Sinto falta de seus desafios — exibiu um sorriso determinado.
Poe baixou a cabeça. Tinha alguma coisa o importunando, estava escrito por todo seu rosto, porém Ranpo não conseguia decifrar o que era. Ficara intrigado.
— Darei meu melhor na próxima vez. — Ele deixou escapar.
— Certo.
Ranpo batucou a mesa de forma padronizada, um ritmo lento e deveras específico, mas não-linear e tampouco claro. Seu objetivo esteve oculto no silêncio e Ranpo não o enxergava. Quem sairia incomodado da situação seria ele. As maçãs de Poe amadureceram de repente.
— Ranpo-kun...
— Sim?
— Aqui estão seus pedidos, Ranpo-san! — interveio a garçonete com uma bandeja.
Poe rapidamente virou-se para a janela e pressionou os dedos contra as mangas da roupa. Aguardou a mulher os deixar a sós outra vez para retomar o assunto, no entanto, o maior manteve a decisão de permanecer calado. Os pulos súbitos na cadeira conforme Ranpo se servia deixavam este último mais aborrecido.
— O que iria dizer?
— Não era importante — afirmava baixinho, em seguida desviava os olhos para a janela. Ranpo batucou os dedos na mesa. Esse som atípico de um restaurante deixava Poe nervoso. Vozes abafadas tomavam o som externo da conversa, embora não houvesse uma de fato.
— Suas bochechas estão vermelhas ainda, Poe-kun. — Comentou Ranpo. Arqueou uma sobrancelha em dúvida. — O que iria dizer?
Ele esfregou as mãos suadas por baixo da mesa, levantou o rosto para o encarar, mas a coragem se esvaiu conforme os segundos passaram. Edgar baixou a cabeça.
— Não era importante — resmungou novamente. Parecia estar desanimado desta vez. — Precisa retornar para a agência, Ranpo-kun.
Não necessariamente desanimado, mas uma variante: o brilho misterioso de seus olhos tinha apagado no intervalo em que eles receberam os pedidos. Poe estava triste, mas por quê? Apesar de todos os dias ele apresentar seu intenso amor pelo mórbido, qual motivo teria para reforçar as barreiras que o separavam do mundo?
Os cantos dos lábios dele tremiam de anseio, prontos para expor a resposta que Ranpo tanto almejava obter. Poe os comprimia angustiado, depois os umedecia. As palavras beiravam a boca e ameaçavam escorregar; até Poe as engolir.
— Ranpo-kun, algum problema?
Estava encarando a boca dele há muito tempo. Edogawa forçou um sorriso para disfarçar.
— Você continua muito nervoso. Está insatisfeito com alguma coisa? — o outro arregalou os olhos. — Esse lanche não é suficiente?
— Não há nada me incomodando. — Ele esperava que Ranpo acreditasse nisso? Estava claramente chateado com alguma coisa. — Talvez eu deva me retirar. Estou causando desconforto.
Ah, sim, a multidão dentro do restaurante serviria como gatilho para tamanho nervosismo. Poe costumava passar seu tempo somente com Karl, era compreensível vê-lo tão indefeso diante de olhares curiosos que os espreitavam. Ranpo suspirou; o que eles queriam ver, afinal? Eram trabalhadores ordinários, não encontrariam nada que fosse agradá-los em Poe, sendo este um mero amante do mórbido e do soturno.
— Espere um pouco mais. Eu te acompanho.
— Termine de comer.
— Não estou com tanta fome assim — sorriu para ele. Poe comprimiu os lábios e o encarou curiosamente. Talvez estivesse buscando algum sinal que provasse estar incomodando Ranpo assim como os demais, porém, diferente do que esperava, recebia apenas aquele sorriso acolhedor do rival. Ranpo inclinou a cabeça de forma questionadora. — O que está o incomodando, Poe-kun?
Aquele sentimento angustiante começou a espalhar por seu corpo e o enchia de torpor. Ranpo não era capaz de decifrar o silêncio dele. O mais velho cruzou os braços somente.
— Não se sente... solitário... às vezes, Ranpo-kun? — a pergunta escapou por aquela boca ressecada, o que surpreendeu Edogawa. No fim ele realmente iria dizer o que passava em sua cabeça. Um tanto constrangido, Poe começou a brincar com seus dedos sobre a mesa, mantendo a cabeça baixa para não cruzar o olhar com Ranpo.
— Não. Estou bem com isto. Por quê? — voltou a degustar os lanches enquanto observava-o.
— Tenho questionado isto ultimamente. — Poe fez uma pausa. — Existe algum medicamento que trate a solidão?
— Solidão não é uma doença para ser curada.
— Pois creio que seja. Não vejo outra razão para sofrer tanto com ela, senão essa. — O semblante dele ficou sério de repente, então reparou no olhar malicioso; o mesmo olhar que afastava os outros atraía Ranpo Edogawa para as profundezas da alma mórbida de Poe. Por um instante havia se perdido nos olhos dele. — É sufocante olhar para a situação desta maneira. Tenho Karl, estamos sempre juntos, então... Por que continuo sentindo-me tão só? Há algo que possa me salvar deste mal?
— Poe-kun apenas quer uma cura para solidão — repetiu para si mesmo, testando as palavras em sua perspectiva. Abocanhou o lanche para pensar. — Por que tem se sentido sozinho?
Ele balançou os ombros em dúvida. Não sabia o motivo, somente desfrutou do sentimento por longos dias e perdeu noites de sono. Embora passasse horas olhando para páginas em branco, Edgar perdia a concentração nesses devaneios; ele era um homem denso. A resposta aparentava estar óbvia em seu ponto de vista, mas, mesmo assim, ele não a identificava.
Karl arranhou sua calça e subiu em seu colo.
— Também acho que devemos ir, Karl — o homem murmurou debaixo da própria respiração antes de levantar-se com o animal no colo. Poe sorriu para Ranpo como agradecimento pelo passeio. — Até mais, Ranpo-kun.
Ele desapareceu de vista após sair do estabelecimento.
Quando retornou para a agência, Ranpo continuou pensando sobre o assunto que foi puxado: a cura para solidão. Do que se tratava? Sequer ele entendia. Assuntos fora do campo policial não eram seu forte, mas lá estava ele repensando a respeito. Abriu outros pacotes de salgadinhos enquanto olhava para a janela, observava as nuvens serem arrastadas para o norte, os pensamentos eram varridos junto delas. Não deveria ficar aborrecido com um assunto banal deste tipo.
Então por que ainda estava tão atordoado com a sombra no olhar de Poe?

*

Sentado no escuro, solitário em seu quarto, Poe contemplava as páginas de seu novo romance que estava sendo dedicado completamente a satisfação de Ranpo. Ele suspirou, envergonhado por estar trancado na mente dentre pensamentos perigosos e sufocantes, sem ideia de como prosseguir para desenrolar a trama. Há alguns dias teve um encontro com seu rival no restaurante após visitá-lo durante o horário de trabalho; tinha ido levar um pacote de salgadinho para Ranpo. Seu coração saltitava no peito e dizia coisas que Edgar não conseguia compreender embora se esforçasse para ouvi-lo. Era uma situação complexa demais para ele solucionar, ainda assim tentava o fazer para não ter de pedir socorro a Ranpo, cujo certamente sorriria cheio de confiança após entender o que estava acontecendo. Seria humilhante rebaixar-se a isto. Poe deixou o manuscrito de lado e massageou as têmporas, por quanto tempo esteve acorrentado àquele mundo profano que criara?
Seu celular começou a tocar: o som de um corvo cortou o silêncio no quarto e assustou Karl, cujo dormia na cama logo atrás de seu companheiro atordoado na escrivaninha. Poe se obrigou a atender a ligação.
— Poe-kun! — era a voz de Ranpo. Ele suspirou, aliviado. — Está ocupado?
— Não, por quê? — formou um sorriso pequeno. Achava um tanto peculiar quão confortável Ranpo conseguia o deixar. Nunca questionou a fundo este pensamento, apenas permitia-o desvanecer entre outras questões. Mas neste momento, parecia uma boa pergunta a fazer para si mesmo.
— Pode buscar salgadinhos para mim naquela loja de sempre? — pediu calmamente. Poe fechou os olhos para visualizar o menor sentado em uma posição desleixada na cadeira do escritório, as pernas apoiadas sobre a mesa enquanto olhava para os colegas ocupados. Seu sorriso aumentou.
— Certo. Levarei para a agência.
A chamada encerrou momentos depois de uma breve despedida. Ele guardou o aparelho no bolso, pegou Karl e colocou-o sobre os ombros, enfim saiu para comprar os salgadinhos preferidos de Ranpo. Receber ligações estava fora da sua rotina; dificilmente alguém lhe daria tamanha atenção desta forma, porém Ranpo iniciou este hábito e aparentava querer mantê-lo por certo tempo. Ainda assim Poe sentia conforto em conversar com seu querido rival, embora sua presença atraísse maus olhares Ranpo não demonstrava estar incômodo de fato. Portanto aceitava as investidas de aproximação de Edogawa.
Demorou alguns minutos para chegar na loja de conveniência preferida de Ranpo para comprar lanches. Na frente do estabelecimento, seus olhos cruzaram com uma figura baixa que devorava os salgadinhos de um pacote que tinha em mãos. Poe diminuiu as passadas até parar, encarou Ranpo por alguns segundos sem este o perceber. Estava confuso. Por que pediu para ele comprar besteiras se já estava a caminho do lugar? Poe decidiu ir questioná-lo.
Se aproximou do mais novo com os ombros encolhidos, constrangido por ter sido feito de bobo, e acenou para Ranpo, cujo exibiu um sorriso maravilhoso para ele.
— Oi, Poe-kun!
Soava como uma piada ruim solta entre um grupo de amigos íntimos e ele era o integrante novo que não a entendia. Gostaria de voltar no tempo e permanecer o resto do dia preso nas páginas do manuscrito; queria ter ignorado a ligação de Ranpo para não ter de comparecer àquele lugar, para não entrelaçar seu caminho ao dele. Contudo, Poe teve de encarar a realidade: já tinha cometido o erro, não poderia simplesmente dar meia volta e desaparecer em um beco sombrio. O coração batia depressa, as pulsações faziam-no corar e deixavam Poe atordoado.
— Ranpo-kun — respondeu o cumprimento um tanto distante do corpo; Ranpo reparou na maneira como os lábios dele movimentavam para manter uma linha reta. — V- Você já tinha comprado os lanches — Poe resmungou, a voz ficou falha de repente. — Por que pediu para eu vir?
Edogawa permaneceu quieto durante alguns segundos somente o olhando. Observava cada movimento de Poe, as expressões tímidas, os tremores, a postura envergonhada; e, claro, não ignorava o fato de Karl estar adormecido sobre os ombros do outro como de costume. Ele formou um sorriso subitamente.
— Quer dar uma volta? — convidou-o de forma que assemelhasse a situação a um encontro casual; embora tivesse sido planejada na noite anterior por estar angustiado com o problema peculiar de Poe.
Estava crente de que era uma brincadeira estúpida para o fazer de otário.
— Venha! — Ranpo o pegou pelo pulso e o levou para um caminho diferente do habitual.
Engoliu em seco, assustado, Poe costumava estar limitado a certos lugares pois não queria importunar pessoas que não faziam parte de seu círculo social; não significava que muitas foram incluídas nele, entretanto. Ele preferia carregar Karl para passeios fora dos holofotes, bem longe de qualquer palco, assim não se encontrava aterrorizado no posto do antagonista de sua própria história. Poe enxergava a si mesmo como seu maior inimigo, porém, por alguma razão, continuava jogando esse sentimento horrível para Ranpo e tratava-o feito rival — Poe não desviava o foco deste objetivo: derrotar Ranpo era prioridade independente da circunstância.
Depois de longos minutos de caminhada por uma avenida pouco visitada, Ranpo o arrastou para dentro do prédio que ficava de frente para um enorme parque. Sequer percebeu que estavam de mãos dadas, coisa que Edgar causou no meio do caminho por conta do nervosismo, e se dependesse de Ranpo, ele demoraria para notar. Subiram as escadas para o quinto andar e seguiram em silêncio para uma porta situada no fim do corredor. A ficha não tinha caído — Ranpo questionou se era possível alguém ser tão lerdo quanto Poe — mesmo quando entrou no cômodo por trás da porta, cujo revelou-se ser uma sala de apartamento. Olhou os arredores, parecia um cantinho aconchegante para morar, porém, de alguma forma, os móveis que ocupavam o local não pareciam ocupar o espaço vazio que crescia no peito. Imaginou enfim quão solitário deveria ser morar naquele apartamento.
— O que estamos fazendo aqui? — finalmente indagou. Poe virou para o rival, o qual estava recostado na porta o olhando, calado. — Ranpo-kun, este é seu lar. Me trouxe aqui para me prender? — ele arfou. — É uma emboscada?!
Ranpo balançou a cabeça negativamente. O ar parecia menos pesado naquele momento. Talvez fosse por ter uma companhia. Ou, quem sabe, o motivo fosse porque a companhia era Poe.
— Poe-kun fica desconfortável quando estamos em público, então decidi trazê-lo para um lugar mais confortável. — Levantou o rosto para o olhar. — Eu só quero conversar. Não precisa ficar preocupado.
Poe virou para contemplar a sala mais uma vez.
— E quanto a agência?
— Eles se viram sem mim. Eu ajudaria apenas se fosse um caso importante, mas tem tido situações normais nestes últimos dias. Não sou necessário até segunda ordem — Ranpo balançou os ombros e dirigiu-se para o sofá. Bateu no assento do seu lado para indicar a Poe onde sentar.
O guaxinim desceu dos ombros do homem e correu para aconchegar-se na poltrona próxima de uma estante de livros. Seu parceiro, no entanto, demorou para chegar no lugar indicado, ainda estava receoso pela razão para ter sido convidado. Ele contemplou os mundos criados nas páginas de todos os livros nas prateleiras; era aquele olhar diferente de Edgar Allan Poe que Ranpo esteve aprisionado. O coração palpitou em anseio após notá-lo.
— São... São meus livros? Aqueles que escrevi para você? — exibiu um sorriso ao virar o rosto iluminado para Ranpo.
As bochechas arderam. Edogawa virou o rosto para disfarçar.
— Você os guardou!
— Eu nunca esqueceria um caso solucionado. — Respondeu timidamente.
Ver a forma como Poe sorria o fez perceber quão solitário ele se sentia. Era uma sensação de vazio que continha um formato inovador. Sua solidão tinha outras causas, entretanto. O motivo tinha nome e sobrenome; era alto, tímido, confuso e levava o amigo guaxinim para todo canto. A razão para Ranpo sentir-se solitário tinha um sorriso lindo também.
A conversa de ambos desenrolou a partir dali. Poe contou ao rival sobre o romance que estava escrevendo; sem revelar detalhes cruciais, embora sua empolgação transbordasse o suficiente para Ranpo ter pistas sobre como ele encerraria mais um caso. Sem eles perceberem, à tarde se foi e o anoitecer chegou. Resplandecente por trás da janela, a lua iluminava a cidade com sua glória e beleza. Poe a observava do outro lado do vidro com certo encanto e comentava a respeito de sua secreta paixão por ela, usou palavras um tanto mórbidas para descrever seu amor e enroscou esse sentimento no coração de Ranpo durante o discurso. Por fim desviou o olhar para Edogawa e, entristecido, comentou mais uma vez sobre quão solitário ele se sentia às vezes.
— Infelizmente não há uma cura — suspirou. — Mas, Ranpo-kun, eu percebi que me sinto menos solitário quando estamos juntos.
— Sério? — sua voz escapou.
Poe concordou num balançar de cabeça. Ele parecia confuso.
— Não entendo por que meu rival me traz tanto conforto — questionou a si mesmo em um murmúrio, depois olhou para Ranpo. — Não é estranho?
— Não. Senão ambos estaríamos presos nesta situação, tanto a solidão quanto ao conforto.
— Deixo Ranpo-kun confortável também?
A maneira como seus olhos brilhavam deixavam Ranpo em êxtase. Era tão encantador quanto o sentimento de concluir um caso e ser elogiado por isto.
— Mais do que confortável. Poe-kun me deixa deslumbrado. — Fizeram uma pausa para trocarem olhares. Demorou para compreender o que deixou escapar. Quando foi perceber era tarde demais para retirar suas palavras.
Poe retornou para o sofá e sentou do seu lado.
— Deslumbrado, você diz — sussurrou, em seguida sorriu. — Então era isso.
— O quê?
— Ranpo-kun me deixa cativado — ele riu baixinho e voltou a olhar para a lua, porém ela estava fora de seu campo de visão. — Eu nunca soube quais palavras poderiam descrever este sentimento. Creio que cativante seja uma delas.
Nenhum deles sabia, de fato, o que causava essa ausência de solidão quando estavam juntos, somente a aceitavam de bom grado. Ranpo olhou para a janela também, seu coração estava inquieto. No fim ele não desvendou o mistério por trás do olhar soturno de Por nem descobriu qual era a cura para solidão.
Mal sabiam eles que a cura estava bem ali; sentado no assento ao lado.

*

A amizade de ambos desenvolveu bastante nos últimos meses. Aqueles momentos reconfortantes em que ficavam juntos à sós, aconchegados um no outro, tornaram-se mais frequentes com o passar dos dias. Ranpo convidava Poe para seu apartamento onde desperdiçavam as horas restantes antecedentes ao anoitecer para conversarem a respeito de algum caso criminal ou quaisquer romances que Edgar tenha escrito; criaram o hábito de encontrarem-se duas vezes por semana durante a tarde na ADA, durante os outros dias viam-se apenas em restaurantes e lojas de conveniência para almoçarem juntos. Conversar sequer era necessário. Por vezes eles sentavam na calçada e observavam as pessoas ao redor, embora passar muito tempo em público deixasse Edgar deveras nervoso, ter a presença de Ranpo ajudava-o a relaxar um pouco. Karl também assumia o papel de calmante vez ou outra. O detetive e o guaxinim uniam-se quando Poe começava a ficar inquieto.
Conforme a solidão se ausentava, Ranpo perdia-se nos pensamentos enquanto Poe contava cheio de ânimo sobre alguma ideia interessante que tivera. Ele assistia a timidez do outro desaparecer e a paixão pela literatura transbordava nos comentários que fazia; a concentração de Edogawa costumava estar direcionada ao sorriso de Poe e o olhar suave dele. A maneira como ele movimentava os lábios deixavam-no hipnotizado: Ranpo teve de admitir, depois de um tempo, que estava fascinado por Edgar.
— Portanto, Karl, iremos comprar uma roupa adorável para você — o mais velho completou exibindo aquele doce sorriso. Ranpo apoiou o peso no encosto da cadeira e a equilibrou de forma que mantivesse as pernas sobre a mesa, seus olhos estavam fixos em Poe. Ele pegou o guaxinim e ergueu-o para mostrar Karl ao detetive. — O que acha: um pijaminha ou um casaquinho?
— Os dois. — Respondeu dentre um sorriso. Poe inclinou a cabeça para decidir se concordava, por fim agradeceu a opinião do rival com um riso breve e baixo.
— Entendo. Karl, prepare-se para suas roupas — abraçou o animalzinho.
Ele semicerrou os olhos, Karl era realmente sortudo por receber abraços de Poe. Às vezes acreditava que o guaxinim queria esfregar na sua cara quão sortudo era; Ranpo somente comprimia os lábios quando os via abraçados e desviava o olhar para não ter de encontrar Karl o espiando com seu ar de deboche. Recusava-se a aceitar, entretanto, que ficava enciumado por causa de um guaxinim.
Poe deixou o companheiro na poltrona da sala de Ranpo e virou-se para o dito rival — ele ainda insistia em chamá-lo desta forma apesar de Ranpo ter reclamado várias vezes.
— Suponho que não tenha descoberto quem é o assassino do meu último romance.
— É a recepcionista — rebateu prontamente. Poe arregalou os olhos em surpresa. — Apesar de ter apresentado um bom álibi, ela era a única que tinha motivo para matar o rapaz. — Ele balançou os ombros em desdém. — Foi interessante, de qualquer forma. Bom trabalho, Poe-kun.
Os mistérios de Poe eram maravilhosos, claro, e Edogawa orgulhava-se por ele estar se esforçando tanto para o agradar; porém Ranpo gostaria de ser o foco de seus pensamentos naquele momento. Sem romances, nem Karl ou ADA. Apenas eles e nada mais. Entretanto, suas investidas em aproximar-se de maneira diferente — fora do campo de amizade — não eram notadas por Poe. No começo acreditou que ele estivesse ignorando, mas, conforme Ranpo tentava de novo e de novo, observou que Poe era denso demais para compreender quais eram suas reais intenções nos convites repentinos para encontros ou ligações aleatórias no meio da noite com a desculpa de que estava com dificuldade em algum capítulo; era tudo uma fachada para poder revê-lo e ouvir sua voz preencher o silêncio.
Envergonhado por conta do elogio, Poe desviou o olhar para as mãos geladas em seu colo após sentar-se no sofá. Ele estava fazendo aquela expressão adorável que assombrava a mente de Ranpo às vezes — de vez em sempre, para ser honesto. Quem diria que um autointitulado vilão poderia ser tão interessante aos olhos do detetive? — enquanto esfregava as mãos nervosamente. Poe corou.
— E- Está me encarando de novo, Ranpo-kun.
Nem quando o olhava por longos intervalos Poe captava seus sentimentos. Ranpo era ótimo em diversos assuntos, porém sentimentalismo nunca foi seu forte. As palavras não fluíam com facilidade e ele estava bem deste jeito; ou deveria estar. Aguardou por algumas semanas seus desejos súbitos voltados para Edgar desaparecerem. Meses depois pegou-se o olhando em silêncio com um sorriso bobo. Mesmo assim, Poe não percebia suas vontades proibidas. Ranpo fazia comentários inadequados e sugestivos, mas Poe não os entendia. Pela primeira vez sentiu-se um idiota por causa de outra pessoa. Era tão ruim assim em suas demonstrações de interesse amoroso?
— Está preparando outro caso para mim? — Ranpo soltou de repente. Tinha o deixado ansioso, Poe tremia soterrado no silêncio. Por fim suspirou, sentou do lado do mais velho, jogou o corpo para o lado para deitar a cabeça no ombro de Edgar. Ele era definitivamente péssimo nisso.
— Na verdade, estou, sim. Comecei meu planejamento durante a noite anterior, quero dar-lhe algo terrivelmente complexo desta vez — era o que sempre dizia. Ranpo gostava de visitar os livros dele, sentia-se um pouco mais próximo do coração de Edgar desta forma. Ele dizia que seu coração era derramado sobre as páginas; e tudo o que ele amava, amava sozinho. — Acha que Karl me deixará o vestir com um casaquinho?
Resmungou alguma coisa. Seus pensamentos dissolveram na voz de Poe durante sua curta narração a respeito de uma tentativa anterior de vestir Karl. O tom de voz dele revelava um homem carinhoso; as pessoas costumavam julgá-lo da forma errada. Agiam como se nunca tivessem ouvido falar no ditado “não julgue o livro pela capa”, pois Poe era um tesouro perdido. Por outro lado, Ranpo ficava satisfeito por ser o único que viu seu verdadeiro conteúdo — diferente do que acreditou nos primeiros momentos, Poe não tinha páginas em branco. Em cada uma delas havia partes de sua alma e ele contentava-se em escondê-las apenas para si.
Poe tornou a cambalear de um lado para o outro com um ar pensativo. Talvez estivesse revisando seu planejamento para o novo romance ou questionando onde comprar as roupas para Karl. Não importava tanto quanto a expressão curiosa dele; era adorável a maneira como Poe brincava com o próprio cabelo para manter-se concentrado nos pensamentos, enroscando as mechas nos dedos.
— Ranpo-kun? — observava-o de soslaio. Edgar aparentava estar preocupado. — Está mais distraído do que o habitual. Aconteceu alguma coisa?
As palavras embolaram na língua em recusa de escapar. Não estavam prontas para serem reveladas, apesar de Ranpo ter preparado a mente durante dias para esta declaração. Enfim suspirou e sorriu, disse que estava tudo bem, depois deitou no sofá de forma preguiçosa. Poe o olhou por alguns segundos ainda confuso, somente para aceitar a fala com um balançar de ombros. Continuou o assistindo cambalear e questionou se Poe não era capaz de ouvir as batidas de seu coração, cujo tamborilava seus sentimentos alto suficiente para desesperar Edogawa. Esses sons enamorados que escapavam de seu peito não alcançavam Poe, de fato. Talvez fosse esta a razão para ele não enxergar a verdade em seus olhos.
— Tem certeza de que está tudo bem? — despertou dos devaneios após sentir o calor da ponta dos dedos de Poe tocar sua bochecha. Tinha uma distância curta entre eles, diferente do comum. Pôde contemplar de perto a beleza dos olhos de Edgar. O rosto de Ranpo aqueceu vergonhosamente. — Ranpo-kun, você...
— Por quê... — Ele travou de novo. Não conseguia pensar. Eram violetas de certo ângulo, tornavam-se cinzentos de outro. Estava confuso e maravilhado.
— ...está resmungando faz um tempo. Está insatisfeito com alguma coisa? — corrigiu a postura e sentou do lado do detetive para o observar de perto, todavia seu comportamento preocupado repentino deixava Ranpo mais constrangido. — Ranpo-kun.
— Poe-kun — sibilou timidamente. Essa vergonha não era de seu feitio. Edogawa engoliu em seco.
Com o braço esticado por cima do encosto do sofá para servir de apoio para a cabeça do detetive, Poe usou a mão livre para envolver o pulso do outro e o puxar para perto, contudo Ranpo reclamou e disse que estava tudo bem, por isso não precisava se preocupar. O rosto dele, no entanto, ficava cada vez mais vermelho e Poe não conseguia aceitar uma mera desculpa. Pôs-se a investigar as causas para a vermelhidão do menor.
— Você claramente não está bem!
— Então pare de me tocar, droga! — ele empurrou o corpo bruscamente para trás, impulsionou o peso para cima do braço do sofá e perdeu o equilíbrio, caindo no assoalho frio. Ranpo bateu a cabeça. — Ah, merda...
— Ranpo-kun, está tudo bem?!
O coração palpitava descontrolado no peito. Pousou a mão para sentir as batidas aceleradas, em seguida cobriu a face avermelhada. Por que estava desviando do assunto? Era tão simples, bastava dizer a verdade. Precisava dizer que estava apaixonado por Poe. Então por que o nervosismo estava complicando a situação?
Poe ajoelhou do seu lado para o pegar no colo. Ele o tratava de maneira atenciosa e isso deixava Ranpo incomodado. Por alguma razão ser cuidado com tanto carinho alimentava os sentimentos que floresciam em seu coração.
— Venha, o deitarei no sofá. Quer chá ou um remédio para dor? — questionou conforme pegava-o estilo noiva para levá-lo para o sofá do lado oposto, cujo era maior do que o outro.
Tornara a resmungar palavras que escondiam seus verdadeiros sentimentos. Era impossível não se irritar consigo mesmo. Ranpo era o maior detetive deste mundo, portanto uma declaração de amor não deveria significar tanto para Edogawa — lá estava ele agarrado nas próprias roupas enquanto Poe procurava por um medicamento para tratar a dor.
— Há tempos tenho observado este comportamento, Ranpo-kun — complementou o outro seus pensamentos anteriores, assim quebrou o silêncio. Ele retornou com um copo de água e um comprimido. — Estou o incomodando? — Ranpo apressou-se a negar, levantou num pulo súbito para segurar Poe perto de si. — Ranpo-kun?
— Dê-me o remédio logo — não era isso que gostaria de ter dito, mas já tinha saído quando foi perceber. Desencantado por sua resposta, Edgar apenas fez o que fora ordenado, seguindo o anseio de seus pensamentos ao afastar-se de Ranpo. Os olhos do detetive ofuscaram a beleza de sua alma com estas palavras ácidas; elas definharam sua coragem na mesma velocidade em que Poe a reuniu.
Criaram enfim uma parede entre eles; essa barreira invisível era mais real do que o silêncio e a solidão em conjunto. Ranpo arrependia-se de um lado e Poe amargurava-se do outro. Oferecer tamanha afeição para terceiros não era de seu feitio, Ranpo sabia disto, então, perguntava para seus pensamentos, por que ele estava negando suas demonstrações falhas de resistência ao medo?
Poe temia a verdadeira face dos batimentos do coração, batidas estas que clamavam coisas que ele não conseguia compreender. Contudo, tinha certeza, teria de encará-las cedo ou tarde.
— Tem agido estranho ultimamente — repetiu mais uma vez para quem sabe, desencadear as palavras amontoadas na língua do detetive. Mantinha-se em pé diante dele. Seus olhos fixados na figura trêmula contra o sofá, o copo replicava os movimentos circulares feitos por Edogawa. — Você parece bem solitário.
De fato, ele estava inacreditavelmente solitário mesmo na companhia de Poe.
— Se quiser conversar, eu me ofereço para ouvi-lo — continuou depois de um tempo. Sequer isto o motivava a confessar seus pensamentos. Ranpo estava absorto neles.
No fim Ranpo conseguiu o que queria: Poe tinha os olhos nele naquele momento. Era o centro de sua atenção e as frases dóceis rodeavam-no. Não havia Karl para os interromper nem multidões de olhares julgadores; eram apenas eles como deveria ter sido desde o início.
— É patético — Ranpo murmurou dentre um riso.
— O quê?
— Eu não consigo dizer três palavras. Meu declínio é visivelmente ruim. Péssimo, para ser honesto. — Devolveu o copo vazio para o mais velho e sorriu; um riso falso, porém brilhante. Poe comprimiu os lábios. Detalhes como estes eram perceptíveis, mas Poe nunca sabia o que fazer com eles. Caso apontasse-os Ranpo poderia ofender-se. Se ignorasse poderia magoá-lo. Ele ficou contra a parede. Contudo, este conflito teria de ser resolvido ora ou outra; Ranpo não poderia permanecer distante para sempre.
— Refere-se a qual declínio? — suave como a brisa durante uma noite de verão, as palavras deslizaram de maneira clara e objetiva, apesar de Poe temer terem soado desagradáveis. — Estou preocupado. Eu fiz alguma coisa, Ranpo-kun?
A única coisa que Edgar tinha feito era ter o deslumbrado de forma marcante desde o começo.
— Não, não fez nada — relutou. Seu olhar o delatou para Poe. Ele enxergava melancolia por trás daquele silêncio. Por que estava calando o que o incomodava? Declínio foi a palavra usada, mas por qual motivo? Os segredos de Ranpo permaneceriam acumulados em seus sorrisos discretos e falsos. — Eu apenas... Poe-kun, estou encantado por alguém. Esses sentimentos sórdidos têm controlado meus pensamentos mais do que a lógica. Não consigo parar, talvez eu nem queira, mas é ruim. Não importa quantos ângulos eu encontre para analisar a situação, é ruim. Eu sequer sei como abordar essa pessoa. Casos amorosos não deveriam ser tão complicados quanto homicídios e crimes — Edogawa por fim suspirou; um sopro que aliviou o pesar de seu peito num empurrão breve para o abismo e, depressa feito o pavor que foi concentrado no rosto do detetive, a vertigem levou-o ao chão. Aquele baixo ruído, por pouco inaudível, o fez recobrar a consciência e despertar para a realidade: seus olhos desalentos rolaram para a face sombria de Poe e ele, em pleno esplendor momentos antes, olhava-o empalidecido.
Aquelas palavras antes emboladas em receio e medo no interior de Ranpo somente foram repelidas naquele tom musical, porém odioso. O enjoo logo veio e Poe recusou-se a ouvir mais sobre o tal amor. Então era isto; estava solitário por falta de atenção da pessoa desejada, sua amada. Talvez Ranpo pudesse ser curado de fato, poderia ser salvo dessa doença poética e inexistente, ele poderia escapar da situação completamente intocado. Embora Poe fizesse esforços para compreender, partes de sua alma vibravam de desgosto — um sentimento inimaginável cresceu no peito onde costumava sepultar a solidão; Poe contemplava a figura mover-se e enegrecer a tranquilidade esclarecida por Ranpo. “Encantado”, pensou consigo mesmo enquanto escapava o ar gélido da morte pelos lábios. “Por que me sinto perturbado? Seja quem for deve ser uma pessoa abençoada. Ranpo-kun está enfeitiçado por tamanha beleza, afinal.” Contudo, o olhar intimidador prevaleceu no topo. Assustou Karl e deixou Ranpo incomodado, porém não era suficiente para fazê-lo sair dali.
— Poe-kun? — chamou-o trêmulo.
— Deve ser uma bela mulher, suponho — no mesmo tom ele respondeu. Trêmulo de raiva, trêmulo de ciúmes, trêmulo porque Poe queria, acima de tudo, chorar. — Por isso estava tão atordoado?
Ranpo rangeu os dentes. Sentiu-se ofendido. Ele realmente não entendeu o que estava tentando dizer? Poe era idiota?
— Não apenas isso — grunhiu, raivoso. Poe estava ouvindo? Uma mulher... — Ele não entende minhas investidas.
— Talvez você não esteja sendo claro — sua voz dissolvia na depressão do torpor. Poe preferia adormecer no colo da Morte do que encarar esta situação. Por que seu peito doía?
— Poe-kun.
— As faculdades dela devem ser tão admiráveis quanto sua aparência, — murmurava sozinho — não vejo outra razão para Ranpo-kun estar interessado. Mulher entregue às restrições da sociedade não seria cativante, certo? Sob os lençóis da vida ela pode criado um conhecimento surpreendente...
— Poe-kun.
— ...uma jovem majestosa e corpulenta, suas feições devem ser delicadas e graciosas.
— Poe-kun.
— Além de ser extraordinariamente inteligente. Um intelecto invejável...
— Poe-kun.
— ...e deve trabalhar bem mesmo sob pressão. Me pergunto quem é ela. — Ele parou por um instante para assistir Ranpo levantar num salto súbito. — Ranpo-kun?
— Eu definitivamente sou péssimo nisso. — Ranpo reclamou. — Mas você torna tudo mais complicado. Não há coerência no que diz; mulher alguma me atraiu.
— Um homem, portanto — Poe soprou, indignado. Repousou a mão pesada sobre o peito e sentiu o coração bater; ainda estava vivo para sua infelicidade. A vida era cruel, de fato. Era terrível, desprezível.
— Eu posso terminar meu pensamento? — pediu irritado. Vê-lo tão deprimido de repente feria seu coração. Poe concordou silenciosamente, pediu por perdão e baixou a cabeça mais uma vez. Os olhos opacos delatavam o medo, sua angústia amarga que descia a garganta num doloroso arranhar. — Poe-kun. Olhe para mim.
Ele balançou a cabeça. Seu interior tremulava e exibia novos sentimentos: inveja, tristeza, traição. Sentia-se traído por nenhuma razão além do frio; a frieza de sua voz ao dirigir-se a Poe enfeitiçava seu pobre coração, as batidas aumentavam depressa, tornava o exterior inaudível e ele, recolhido nos pensamentos, sequer percebia que por trás da expressão séria de Ranpo havia frieza alguma. Ele delirava. Uma alucinação tola ante ao amor rejeitado — amor rivalizado por sua teimosia; quem sabe não quisesse acreditar que encontrou um sorriso para chamar de lar. Poe sempre esteve sozinho e Ranpo o tornou dependente desta companhia, um vício difícil de superar — que Poe descrevia nas páginas conforme derramava pedaços de seu coração sobre elas.
Edgar Allan Poe era um homem solitário; seus contos sórdidos pregavam morbidez e convertiam meros desconhecidos em amantes da Morte. Não fazia diferença Ranpo desaparecer de sua vista ou permanecer ali até ser unido pelo Destino ao homem que desejava num altar. Ele não se importava; dizia para si mesmo que não deveria, pelo menos.
— Poe-kun, olhe para mim — Ranpo segurou seu rosto e ergueu-o para mirar os olhos desvanecidos na melancolia. Mãos pequenas, ele sentiu, calorosas e acolhedoras, as mãos de Ranpo encaixaram na curvatura de seu rosto feito peças de um quebra-cabeças e, por um momento, Poe acreditou estar completo. Um momento turvo como um sonho. Ranpo comprimiu os lábios. — Está ouvindo o que está dizendo? São tolices. Nunca pensei que Poe-kun seria capaz de dizer tantas baboseiras assim.
— O que esperava? De suas palavras senti apenas dor. Não tenho pensamentos claros. Imaginar Ranpo-kun apaixonado por outra pessoa fere meu coração profundamente. Fere tanto quanto mil agulhas descendo a garganta. — As bochechas receberam apertos leves e raivosos. Poe fechou os olhos para ocultar a realidade com o fino véu da mentira, queria esquecer o sentimento pútrido que consumia sua alma. — Eu não quero apodrecer no meu leito pensando nos teus sorrisos para outra pessoa.
Ranpo somente observava. No mesmo tom trêmulo que ele murmurou sobre uma mulher, Poe declarava-se sem pudor. Como numa música as palavras soaram em sua melodia única; cantadas por uma voz tão tímida e igualmente cativante que poderia desencadear o mais puro afeto mesmo no coração mais destroçado. Definhava o amor com tropeços nas emoções súbitas emergidas do peito, seu silêncio estrondoso partiu em meio à vergonha, Poe admirou a beleza da inveja que por fim aceitou.
— Eu dediquei manhãs, tardes e noites a ti; cada página de cada romance foi pensada exclusivamente para Ranpo-kun. Fiz tudo isso para que, afinal? Sequer sou sua cura... Encontra-se solitário por outro que acolheu em seu coração. Custou-me tempo os sorrisos que nunca pertencerão a mim.
— Poe-kun.
— Então por quê? — levantou de forma desajeitada, envergonhado. — Por que me permitiu estar tão focado em você?
— Poe-kun.
— Me deixou afundar nessa angústia confortável!
— Poe-kun! — exclamou. — Sobre o que está falando?
O relógio de parede emitia um ruído irritante, e regular, que perfurava sua cabeça feito uma agulha e estourava os balões de questionamentos, derramando-os, como água, sobre sua mente antes tão clara conforme a mágoa completava o espaço restante deixado pela inveja. Um turbilhão de perguntas silenciou as batidas de seu coração; o sangue fervente enrubesceu suas maçãs e a voz de sua garganta foi isolada. Nada saiu. Ele não pensava — Poe não entendia, de fato, o que dissera. Essas trivialidades eram deixadas de lado, porém, por envolver Ranpo, ele as realçava a cada gemido sôfrego vindo do peitoral.
— O que estou falando? — repetiu meticulosamente, desconcertado com as próprias sentenças fincadas nas lembranças vagas, incertas, que guardara.
— Poe-kun...
— Estou falando sobre os pensamentos tenebrosos que tenho a respeito de Ranpo-kun, — deixou escapar — durante as noites mais solitárias para me despertar uma tranquilidade inigualável. Eu já disse que me sinto menos solitário quando estamos juntos. — Então segurou as mãos pequenas, as mesmas mãos que o acolheram no calor da vida em suas palmas, com as suas mãos frias. Segurou-as e sentiu a diferença de tamanho; não apenas das mãos como de suas estaturas, de seus espectros visivelmente distantes embora estivesse fora de questão a pouco. Olhando nos olhos de Edogawa, ele viu o próprio reflexo, viu seu fantasma o encarando de volta com o mesmo semblante decidido que Poe. “Então era isso”, pensou ao admirar os olhos verdes. “Ranpo-kun não estava enganando ninguém; apenas eu. Estive enganando a mim. E só eu, só eu amei o amor de meus enganos.” Amor que rejeitou, e silenciosamente nutriu contra sua vontade, por quem mais odiou durante anos. — Ranpo-kun realmente é fascinante. Tão complexo quanto a Morte em sua dança hipnotizante antes do sepultamento.
— Pare de pensar demais e exponha o que está sentindo. Não estou entendendo nada. Poe-kun sequer me deixou terminar de falar!
— Desculpe, eu... — Recuou em passos tímidos. Novamente perdera a voz, e com ela, a razão. Perceber que sua contemplação esteve voltada todo este tempo não para as questões filosóficas e emocionais, mas, sim, para a pessoa à sua frente que libertara tamanha dúvida ante a verdade renegada, deixava Poe nervoso. Uma nova questão para lidar em silêncio. — Talvez eu esteja...
— Pelo amor, se não vai dizer, então dê-me tempo para concluir meus pensamentos! — Ranpo ficara mais irritado. — Falou sobre uma tal mulher, depois sobre um homem, de repente mencionou essa pessoa. A paixão é minha, tenho direito de declarar meu amor!
— Mas...
— Suas noveletas me fascinam, os romances me cativam e os contos reprimem tamanho talento que sequer consigo explicar. E pensar que o autor de tantas obras seja você, um idiota que não percebe que quem eu amo é o autor dos meus mistérios preferidos! — num único fôlego ele expeliu as palavras sufocantes que somente puderam acumular na língua. Libertou-as de seu confinamento quase eterno para ter paz em ambos os lados; Ranpo e o coração. Ele relaxou os ombros, baixou a cabeça, a sombra da noite ocultou seu rosto avermelhado e, silencioso, pôs-se a sorrir. Estava aliviado por independente de qual seja a resposta, ter dito finalmente a Poe sobre seu amor.
Soterrados no silêncio da noite, as declarações dissiparam ali — entre eles, entre as quatro paredes do apartamento, sob o luar — conforme o tempo passou. Não trocaram olhares neste intervalo. Sorrisos pequenos, sem que percebessem, tinham formado.

*

Após aquela noite de outubro cobertos pelo luar por trás da janela, tempos depois de muita relutância e impaciência — por parte de Ranpo, pois Poe entrou em colapso quando compreendeu que ambos tinham se declarado e, certo de que era uma péssima ideia, tentou convencer-se a fugir da situação —, houve uma conversa convicta sobre os sentimentos mútuos. Chegaram num consenso mesmo Poe estando com nervos à flor da pele, prestes a desmaiar por tamanha pressão estar o sufocando num momento em que atenção era crucial; Ranpo o segurou pelas laterais da face para tranquilizá-lo. As mãos deslizaram na pele cálida e alcançou o pescoço antes de o soltar. Ansiou por dias e sonhou por noites aquele beijo. Contudo, Poe poderia surtar caso fizesse algo deste tipo justamente depois de uma confissão direta de amor. Pacientemente deixou o autor relaxar no sofá, no assento ao lado, enquanto esfregava as mãos sobre o colo para conter o nervosismo, e por fim, embolados como no início de toda a conversa, decidiram assumir a responsabilidade de ser a cura do outro: a verdadeira cura para solidão.
Para os agentes da agência, a notícia foi motivo para comemoração — apesar do presidente ter sequestrado Poe para o interrogar e certificar-se de que ele era uma boa pessoa para Ranpo. Todos os parabenizaram por terem chegado tão longe, conversas fluíam rapidamente entre os colegas de Ranpo para questioná-lo sobre questões perversas, tais quais Poe foi proibido de ouvir, enquanto o detetive tentava despistá-los ao empurrar todos para cima de Edgar. Sua timidez era notável até para aqueles que não o conheciam, portanto ora ou outra eles retornavam para Ranpo, e sua luta para escapar tornara-se mais árdua.
Estavam equilibrados desta forma: encontros todas as noites e durante o almoço, Poe pedia para Karl levar salgadinhos para Ranpo quando o primeiro não tinha coragem de fazer por conta própria. Ficavam sozinhos dentre os apartamentos intercalados de ambos, seja no silêncio ou envoltos na melodia melancólica de uma música à gosto deles, seus sorrisos custavam a desfazer; os olhares cruzavam algumas vezes, e timidamente eles disfarçavam para, em segredo, deleitarem-se no cintilar único que encontravam apenas nos olhos um do outro. A firmeza no entrelaçar de dedos os recheava com felicidade genuína, um calor exuberante florescia no peito e espalhava-se por todo o corpo; então, absortos nas batidas rítmicas do coração, esqueciam-se do resto: o mundo e suas impurezas não poderiam alcançá-los à esta altura. Estavam seguros.
Os destroços do passado formavam montanhas atrás deles — cada dia desperdiçado para pensar sobre uma vingança mal planejada, o fez odiar o fato de estar tão sozinho quando gostaria de apenas superar aquele sorriso de Edogawa. Todas essas lembranças eram vagas, fantasmagóricas, agiam feito espectros de quem ele costumava achar que era para perturbá-lo nos momentos doces que encontrara sob o olhar de Ranpo. Percebeu então quão apaixonado sempre esteve: matá-lo era sua metáfora para escapar do desgosto de ser isolado do amor. Seu método sombrio para superar a rejeição inexistente que habitava o coração partido largado no peito entre sentimentos caóticos. Poe queria superar o passado para tornar-se o par perfeito para Ranpo. Uma realidade que ele julgava inalcançável. Ele estava curado da solidão; mas quanto ao amor, o que faria? Encontrava-se tão doente de amor, sua cabeça girava e as palavras antes gastas eram rabiscadas nos papeis, desses rabiscos saiam poesias e contos de amor, visões aturdidas nunca descritas por Edgar fariam qualquer um questionar sua sanidade.
Do lado oposto aos questionamentos a respeito de sua saúde mental, Poe repensava sobre o olhar distraído de Ranpo que se dirigia a seus lábios vez ou outra sem ele notar. Quando estava falando Ranpo a encarava com certo brilho; um cintilar cálido e repleto de cobiça. Nunca foi observado por aqueles olhos, mas ele os reconhecia muito bem — direcionou-os para Ranpo sem querer algumas vezes antes contra sua vontade. Para a boca, para o sorriso, para o corpo e tudo que vinha a desejar de seu “rival”, Poe o olhava daquela forma.
Sacodiu a cabeça para afastar os pensamentos conflituosos. À sua frente ele encerrava um novo romance especial: voltado para a felicidade de Ranpo, estava escrevendo sobre um mundo perfeito e seguro para eles ficarem juntos. Dentro do livro tinha apenas o melhor do melhor para poder contemplar a beleza do intelecto admirável de Edogawa. Bastava entregar.
— Poe-kun! — aquela voz divertida interveio o silêncio, por fim uma sombra escureceu o manuscrito empacotado numa capa dura. Poe apressou-se a cobrir num ímpeto desesperado. Ranpo tentou espiar por cima de seu ombro. — O que está aprontando? É um novo mistério para mim? — exibia o mesmo sorriso enfeitado com doçura. Ah, aquela boca era definição de tentação.
Engoliu em seco e concordou num resmungo tímido. O vermelho de seu sangue tomou as bochechas como tela e coloriu o rosto dele. Um ânimo fora do comum geralmente apresentado por outros, ele observava em seu parceiro — não mais rival, mas parceiro — quando estavam juntos e a sós.
— Ainda não terminei, portanto, peço que seja paciente.
— Estou sendo paciente a respeito de tudo que Poe-kun faz. — Soava feito uma reclamação. Ah, ele observara, também, o quanto Ranpo desejava seus beijos. Um sonho compartilhado por ambos que Poe insistia em esconder. — Não me importo se o fizer um pouco mais. Posso esperar.
Por quanto tempo mais ele seria capaz de esperar? Poe implorava para que fosse para sempre, pois ficava muito nervoso quando os próximos passos tinham de ser seus, o coração disparava, a boca secava, e ele não conseguia chegar a lugar nenhum. Por isso Ranpo o levava para frente segurando sua mão. Admirava a tranquilidade dele ao fazer isto.
— O- Obrigado, Ranpo-kun. — Desviou o olhar para a capa escura abaixo de suas mãos. O título feito a mão em curvas delicadas ficava destacado no centro: “A Cura Para Solidão”. Um mero presente, mas tinha deixado seu coração e pedaços feridos de sua alma perderem-se naquelas palavras na esperança de que fosse acolhido carinhosamente no colo de Ranpo mais uma vez. Era mais simples ter dito a ele a frase correta que repetiu dentro da cabeça quando ficara sozinho. Poe era incapaz de declarar-se diretamente. Preferia entregar partes de si mesmo do que falar em voz alta.
Karl o olhava exigindo lucidez. “Seja verdadeiro e deixe-o saber”; aquele guaxinim o julgava por manter silêncio. Edgar estremeceu por completo, agarrou o livro com as mãos trêmulas e levou-o às pressas para o detetive antes deste sair do quarto. O nervosismo tinha o dopado, então Poe somente empurrou o embrulho contra o coração do outro e correu para trancar-se dentro do banheiro. Contudo a sorte não estava do seu lado — Ranpo agarrou seu braço para questionar o que era aquilo tudo.
— O mistério — gaguejou nervosamente. A barriga doía por conta da ansiedade. — É- É só o mistério que eu...
— Mas você disse que não tinha terminado.
— E- Eu... É que... — Poe esfregou as mãos úmidas. Ele tremia.
— Poe-kun — dentre um suspirou o chamou. Ranpo deixou o livro sob o braço e tocou-o no rosto com a mão livre para concentrar a atenção do autor em si. Assim que as írises repousaram em sua figura, o ar de seus pulmões escapou e ele não conseguiu respirar. Poe causava estas reações as vezes; de vez em sempre. — Acalme-se. Respira fundo.
O calor da mão dele na bochecha fria de Edgar deixava-o anestesiado. Qualquer outra perturbação despertada por pensamentos ruins não afetava Edgar quando tinha Ranpo como companhia. Ele ficava em paz consigo mesmo, seja por um momento ou dois, Ranpo conseguia fazer Poe voltar a ser quem era. Poe gostava de quem ele era quando estava com Ranpo. Ele gostava de quem era por causa de Ranpo. Se o detetive se sentia da mesma forma ou era platônico, talvez ele não quisesse realmente descobrir. A verdade poderia ser dolorosa.
— Certo... — Soltou todo o ar de seus pulmões. Enfim pôde sorrir. — Eu escrevi este livro especialmente para Ranpo-kun.
— Oh?
— Há coisas neste livro que você jamais irá encontrar em outro. — Deslizou os dedos nas costas da mão de Ranpo numa carícia gentil e inconsciente, depois a sobrepôs com sua mão trêmula. — Eu espero que goste. Dediquei horas das minhas noites nas últimas semanas exclusivamente para você, Ranpo-kun.
Constrangido, Ranpo concordou ao puxar o braço de maneira brusca, pronto para esconder o rubor de seu rosto. Inflou as bochechas. Poe sequer percebia quão efetivos eram seus toques. Ficava tão bravo por ele ser estúpido a este ponto: como não enxergava quão apaixonado Ranpo ficava por causa dele?
Dirigiram-se para sala e Ranpo sentou no sofá. Poe observou-o abrir a primeira página com delicadeza, os dedos pequenos rondaram centímetros da folha antes dos olhos verdes explorarem suas linhas. Não demorou para Ranpo ser absorvido para dentro do livro. Após chamar Karl, cujo deitou-se sobre o sofá ao lado do livro, Poe adentrou o mundo mágico que criara depois de muitas tentativas de explorar seu ‘eu romântico’.
Abriu os olhos, sua visão foi presenteada por uma enorme biblioteca com centenas de casos arquivados protegidos em gavetas. Do outro lado havia uma biblioteca com dezenas de livros demarcados em prateleiras do gênero mistério. Também encontrou um salão com diversos salgadinhos de sua preferência, inclusive seus favoritos estavam sendo exibidos sobre a mesa central. Por último tinha um quarto gigantesco com uma cama aparentemente confortável no centro, preparada para ser usufruída como desejassem — de qualquer jeito, poderiam usá-la para qualquer coisa. Absolutamente qualquer coisa.
Poe surgiu atrás dele segundos depois vestindo uma roupa mais casual; assim Ranpo percebeu que suas próprias vestes foram trocadas por outras mais confortáveis para a ocasião.
— Este lugar...
— N- Não gostou? — assustado, Poe encolheu os ombros.
Balançou a cabeça.
— Eu adorei — apontou para as prateleiras de arquivos. — São casos não solucionados?
— Casos solucionados por Ranpo-kun em certas partes; noutras estão casos que acreditei que gostaria e...
— Oh, e os livros são do meu gênero preferido? — Ranpo apontou para as estantes. Virou para a ala de salgadinhos. — São meus favoritos!
— Ranpo-kun...
— Esta cama parece muito confortável. Eu poderia dormir durante um dia inteiro nela se pudesse!
Muitas coisas que pensou que despertariam um sorriso no rosto adorável de Ranpo ele guardou ali, um mundo para Ranpo. Ele estava realmente feliz ou forçava aquela alegria para não o desanimar? Edogawa ficara satisfeito com a surpresa ou poderia ter caprichado um pouco mais? Era suficiente para demonstrar quanto o amava ou ser direto teria sido uma escolha melhor?
Poe sentou na cama enquanto o detetive explorava todos os cantos segurando um pacote de salgadinhos — comprou vários e os deixou ali, bem conservados — aos tropeços. Sacodia a perna ansiosamente por conta do nervosismo. Aquelas questões retomavam seus pensamentos durante as correrias súbitas de Ranpo.
— Ah, droga, é tanta coisa... — Parou de ler um documento para virar-se para Poe. Ele estava sentado na cama com o semblante sério, olhando para um ponto fixo. Ranpo devolveu o documento para seu lugar e largou o pacote vazio sobre a mesa, em seguida aproximou-se da cama enorme. O eco de seus passos parecia sobrenatural quando estava caminhando, ressoou por todo o cômodo num melancólico sopro de vida diante da morte de um sonho. Edgar levantou o rosto, seu olhar permanecia distante. — Poe-kun, é maravilhoso — permitiu-se dizer para, enfim, sorrir para o autor desta obra incrível.
— Gostou mesmo? — a voz escapara, tão gélida quanto um corpo à deriva no fundo de um lago. Por um momento acreditou que poderia fazer a garganta dele rasgar. — Se eu tivesse feito outra coisa, talvez...
— Eu gostei. Não poderia ser melhor — apressou-se a interrompê-lo. Poe falava coisas estúpidas as vezes; principalmente quando ficava para baixo. Odiava mais do que qualquer coisa vê-lo desanimado. — Gosto de tudo que você faz, Edgar.
Oh, o som proibido. Melodioso, chamado por um anjo abandonado por Deus, uma sensação esquecida por gerações; seu nome proferido por ele soava diferente e o arrepiava. Parecia um pecado aos seus olhos ignorar este chamado.
— Se Ranpo-kun está satisfeito, então eu... — Ele arfava nervosamente. Reparando nisso, Ranpo segurou o rosto de Edgar mais uma vez; aquele calor chocante fazia-o delirar embora desperto para a realidade. Ela não era tão fria quanto parecia no primeiro momento. A distância entre eles começou a encurtar: Poe aproximava-se do outro inconscientemente. — Ranpo-kun.
Não houve beijos durante todo este intervalo: desde a declaração para o tempo presente, tudo o que trocaram foi companhia, sorrisos, olhares. Nada mais, nada menos. Por vezes Poe acreditava estar bem tendo apenas isto; por vezes Ranpo pensava da mesma forma. No fundo sabiam que nunca foi suficiente.
Hipnotizados pelo olhar um do outro, a distância foi quebrada. Um selo tímido, um simples tocar de lábios, caloroso e repleto de anseio, eles mataram o desejo sórdido antes que este os enlouquecesse. Tocaram as testas, os olhos fechados, ambos exibiam sorrisos e a vontade de continuar murmurava no ouvido — ouça, ouça atentamente no silêncio, ouça —, estavam tentados fazer de novo. Ranpo acariciava as bochechas de Poe com os polegares em movimentos circulares, cuidadosos, os repetia com tranquilidade para manter o foco do mais velho em si.
— Ranpo-kun — chamou. — Podemos fazer isso de novo?
Era uma pergunta boba, mas não disse em voz alta quão engraçado soava ouvi-lo pedir isto. Na verdade, Ranpo achava adorável a vergonha repentina. Não era apenas seu coração que vibrava para comemorar.
— O que está esperando? — soltou num tom provocativo. Sentiu Poe estremecer entre suas mãos e as bochechas dele aqueceram um pouco mais.
— E- Eu só...
— Pare de pensar e me beija logo, Edgar — usou o nome dele de novo. Naquele tom desconcertante, Ranpo o chamou de novo. Precisava atender.
Apesar de hesitantemente repousar as mãos na cintura de Ranpo, o autor deste mundo perfeito o segurou com firmeza — sem tremedeiras, sem pensar, assim como fora ordenado. Poe era realmente obediente — para puxá-lo para ajoelhar-se sobre a cama; Ranpo pôs as pernas nas laterais das coxas de Poe, as mãos deslizaram para o cabelo do outro e dentre madeixas ele enterrou os dedos. Um movimento simples, disseram para si mesmos, bastava ligar as bocas uma à outra num breve e súbito empurrão. Mas olhar nos olhos brilhantes do parceiro parecia mais interessante. Os corações batiam em anseio, cheios de expectativas.
— Edgar.
— Quem está enrolando agora, Edogawa? — perguntou baixinho, quase como um deboche perante sua hesitação. Ranpo comprimiu os lábios, irritado.
Um aperto em sua cintura, no entanto, o fez perder a concentração e junto dela, toda sua coragem; era um aperto fraco, mas trazia todas as sensações do corpo à tona. O peito cantarolou, angustiado, antes do rosto ser tomado por uma mão cálida e guiado para um beijo — nada casto — repentinamente. A umidade dos lábios de Poe deixou-o desconcentrado, em seguida os movimentos envergonhados, mas decididos, interromperam qualquer linha de pensamento que tinha. Por fim, Poe, seu tímido Edgar Allan Poe, invadiu sua boca com a língua. O rosto de Edogawa transformou-se em uma maçã madura. Era quente e úmida, estranhamente macia, o sentimento de encostar as duas línguas era esquisito, porém causava cócegas em Ranpo. Sentiu a mão de Poe cuja ainda estava na cintura, mover-se devagar para acariciar, enquanto a outra em seu rosto brincava com sua pele fervorosa. Ranpo pôde somente estremecer sobre o colo dele e puxar fracamente o cabelo escuro. Quando encerraram o beijo, o ar foi puxado às pressas para seus pulmões. O detetive permaneceu sentado no colo do parceiro, cujo secretamente sorria.
— O que houve com sua timidez?! — resmungou e levantou. Ranpo virou para Poe com certa irritação; e deveras intrigado por este outro Edgar. — Sequer me avisou que usaríamos língua!
— D- Desculpe, eu... — Ah, lá estava ele: encolhido nas vestes sombrias, Poe brincou com os próprios dedos para distrair-se do nervosismo. Suas bochechas antes inexpressivas, ganharam um rubor inimaginável. — Me desculpe!
Ranpo cobriu a boca com o braço e deu as costas para ele. Ainda era seu Poe; seu queridíssimo autor. O sentimento gratificante vagou por seu corpo feito um espectro: um fantasma apaixonado pela vida e suas consequências. Ranpo sentiu arrepios. Ouviu a voz levemente áspera arranhar a garganta de Poe mais uma vez, após ser chamado num murmúrio embargado de timidez — ela tinha retornado para seu devido lugar, pensou.
— Está bravo? — ele tremulou.
— Não, Poe-kun só me pegou desprevenido. — Ranpo suspirou e voltou a mirá-lo. Um sorriso escapou. — Poe-kun é muito atrevido.
O rubor de suas bochechas foram parar nas maçãs de Edgar. Era impossível não se deleitar com esta cena, Poe conseguia ser fodidamente’ adorável quando queria.
— E- Eu não... Não sou atrevido, eu... — Ele arfou, em seguida liberou um grito abafado pelas mãos, cujas usou para cobrir o rosto. Poe deitou na cama. — Não sou atrevido... — Continuou choramingando.
Ranpo deitou do seu lado na cama, envolveu a cabeça do outro com seus braços e o fez deitá-la em seu peito, próximo do coração — batia tão forte a ponto de parecer estar pronto para escapar do corpo — onde, enfim, Poe conseguiu relaxar. Ele alinhou ambos os corpos e os encaixou de forma que pudesse continuar deitado sobre Ranpo, as mãos suaves que tanto adorava poderiam brincar com seus cabelos, carinhosamente sentiu-se protegido nos braços de Ranpo desta forma. Ranpo se esforçava para mantê-lo calmo, embora apenas estivesse o abraçando — soava pouco se olhasse por outros olhos, mas Poe certamente não deixaria de sorrir por muitos dias e noites graças a isto. O calor de Ranpo o envolvia, embalava seus medos e os jogava fora enquanto dava a Poe uma sensação gostosa, e desconhecida. Era assustadoramente confortável.
— Está melhor?
Tão apaixonante. A voz de Ranpo era como música e suas palavras pareciam poesia.
— Mhm... — Apertou-o contra si num ato desesperado. Ouviu o detetive rir nasalado.
— Está tudo bem, Edgar. Eu não pretendo te deixar ir.
Estava envergonhado. Conseguia escutar as pulsações pavorosas de seu coração, elas o deixavam tonto. Ele sentia muitas emoções ao mesmo tempo, mas nenhuma delas era solidão. No coração de Ranpo, sob os cuidados deste, Poe suspirou em alívio. Ele estava curado, contanto que tivesse Ranpo Edogawa ao seu lado, não teria de preocupar-se com solidão; em contrapartida, Poe encontrou-se doente de amor.
Contudo, ele amaria Ranpo com um amor que era mais do que amor. Dessa vez Poe não queria ser curado.

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