prólogo

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Faziam exatamente 23º graus, o céu era de um azul pálido, sem vida, e as árvores verdes as quais eu passava horas fantasiando um dia escalar os troncos cobertos de musgo e me sentar em um galho largo e alto o bastante para ninguém me incomodar enquanto eu lia pela centésima vez o meu livro favorito, agora estavam sem graça e parecia que a altura dos troncos me sufocava, eu não aguentava mais olhar. Eu olhei tudo ao meu redor pela última vez antes de segurar com força a alça da minha bolsa, na qual continha uma pequena quantidade de roupas. As paredes pintadas de bege, a luz amarelada, as flores já murchando no parapeito da janela cujas grades pintadas de preto estavam tortas o suficiente para passar uma pessoa, o que me foi bastante útil nesses últimos anos, e por fim as duas camas, uma ao lado da outra, com os lençóis brancos ainda bagunçados, eu iria sentir falta daqui. Mas de certa forma eu estava feliz, meus olhos estavam brilhando, meu coração acelerado, era uma mistura de ansiedade e medo, eu estava saindo da minha casa.

—É sério que não ia se despedir? —Escuto uma voz familiar que interrompe meus pensamentos melancólicos e ansiosos e sinto meu corpo ficar tão dormente que meus dedos antes firmes segurando a bolsa, apenas afrouxam e deixo a bolsa cair no chão, o barulho fazendo eu despertar do choque.

—Gemma. —Cumprimento a menina a minha frente e desvio o olhar de seus olhos escuros como a noite. Eu havia calculado tudo, havia pedido para virem me pegar pela manhã, precisamente às 9:45 pois era o horário onde todos os outros estariam na trilha e eu não precisaria me despedir, eu odiava despedidas.

—Não respondeu minha pergunta...

Dou de ombros me abaixando para novamente pegar minha bolsa e passo pela morena em direção a saída do quarto, mas quem eu queria enganar? É óbvio que Gemma não me deixaria ir assim.

—Qual é Gems, você sabe que eu odeio despedidas.

—Não vem com essa de odeio despedidas pra cima de mim, deixe essa desculpa para dar ao Luke, nós somos melhores amigas Cami... nós, juntas há 9 anos, dividindo esse quarto ridículo de minúsculo, abraçadas na porra de todos os dias das mães e dos pais... nós. Sério? nenhum tchau? —Ela solta a respiração presa durante sua fala e eu engulo em seco.

Tinha sido burrice arquitetar todo esse plano, Gemma era a pessoa que mais me conhecia no mundo inteiro, ela sabia do casal que havia marcado uma reunião comigo há 3 meses atrás e desde então vinham me visitar, sabia das suas intenções desde o começo, sabia que em breve eu seria adotada. Adotada. Eu sonhei com esse momento durante meus últimos 9 anos morando aqui, no lar da Tia Meire, quando fiz 12 anos apenas fui perdendo todas as esperanças, quanto mais velho você é, menos são as chances de você ser adotado. Fiz amizade com Gemma assim que cheguei aqui, apenas um ano mais velha do que eu, dividíamos o quarto, ela se tornou tudo para mim. Tínhamos planos de nos mudarmos para Nova York e montarmos nossa loja, eu amava moda e ela amava a publicidade, fantasiávamos nossas vidas juntas dividindo um apartamento pequeno e estudando na mesma Universidade, esse era o nosso mundo dos sonhos... até chegar a confirmação de que o casal iria de fato me adotar, eu, com 15 anos, quase que um milagre.
Não contei para ninguém a não ser Gemma, justamente pelo fato de que eu não iria suportar me despedir de mais ninguém.

—Eu deixei uma carta. —Apontei para o envelope branco em cima da cômoda e arrumei uma mecha de cabelo atrás da orelha querendo urgentemente sair dali antes que eu começasse a chorar.

—Tanto faz. —Sou pega de surpresa quando sinto os braços da morena ao meu redor, me abraçando tão forte que chegava a doer em alguns pontos. —Eu te amo.

Fiquei em silêncio durante alguns minutos. Imóvel. Eu era péssima demonstrando sentimentos, eu não sabia como reagir. Senti uma lágrima pesada escorrer pela minha bochecha e respirei fundo me afastando da garota.

—Eu te amo. Nunca é um adeus né? —Sorrio tentando disfarçar os olhos marejados e mais uma vez meus pensamentos são interrompidos, mas dessa vez é uma voz pesada e áspera que chama meu nome e em seguida segura o meu braço.

—Estávamos te procurando! Vamos, ainda temos muito o que resolver. —Era Silvia. A assistente social que me levaria até o aeroporto. Uma megera de salto alto.

Sou praticamente arrastada pelo braço rumo ao estacionamento da casa de apoio e a todo momento eu só consigo olhar para trás, gravando todos os traços do rosto da Gemma, eu iria até o inferno para encontrar essa garota. A dona da casa de apoio, Tia Meire, apenas acena com a mão, eu já havia tido a minha despedida particular com ela, eu não precisava de mais lágrimas escorrendo pelo meu rosto, eu não precisava... até ver ele.

Luke.

Meu peito congela, aperta, se despedaça. Ele não sabia. Ele não devia saber. Ele não devia estar aqui. Olho uma última vez para Gemma e os olhos arregalados da garota apenas me confirma o que eu estava pensando, ele não devia estar aqui, ele devia estar na trilha junto com os outros, esse era o maldito do plano. Minha boca fica seca e mal sinto meu corpo ser empurrado para dentro do carro, saio do transe quando minha bolsa é jogada no meu colo e a porta se fecha em um estalo alto e seco, logo em seguida outro, de Silva entrando pela porta do motorista. Meu coração batia na boca, Luke não devia ta entendendo nada, ele deve achar que eu estou indo ao médico, a um passeio, isso, ele não sabe, eu não preciso me preocupar, e quando eu estivesse em um avião voando direto para Londres para a minha nova casa, eu não iria me lembrar dele. Era disso que eu tentava me convencer.

Mas tudo foi jogado ao vento quando escutei seu primeiro grito, seguido de outro e de mais outro ainda mais alto e ainda mais desesperado.

—Não deu tempo de se despedir de todo mundo? —Ouço Silvia falar de mau tom e engulo em seco mantendo meus olhos no chão, não, eu não iria olhar para ele. —No Natal você manda um postal, vamos.

Natal.

Eu conheci Luke no Natal, estava nevando como sempre neva em Bristol nessa época do ano, ele estava deitado na neve, flocos de neve por todo seu cabelo loiro eu não o conhecia, a única informação que eu tinha era que Luke era o mais novo "Peculiar" era como costumávamos chamar os novatos, eu já tinha notado ele, sempre sozinho, não fez amizades e nem parecia querer fazer, trocamos o primeiro olhar na aula de matemática, eu nunca havia sentido aquilo, borboletas no estômago ao mesmo tempo que sentia minha bochechas corarem, nos meses que se seguiram os sintomas foram aumentando e sequer havíamos nos falado, até aquele natal. Sem falar nada, me deitei na neve ao lado de Luke e ficamos em silêncio observando a neve cair, eu estava congelando, mas não mexi nenhum músculo, eu não sabia nada sobre amor ou paixão, mas sabia que meus sentimentos por ele, era bem perto disso, quase não senti quando seus dedos gélidos passaram pelo meu rosto afastando alguns flocos de neve que haviam pousado ali, mas senti quando seus lábios quentes beijou a pele exposta da minha testa e em seguida apenas nos encaramos e rimos, depois daquilo fomos para o salão principal e conversamos até nos darmos conta dos raios de sol invadindo timidamente as janelas, naquela noite nos abrimos um com o outro, trocamos confidencias, rimos, nos conectamos e quando eu disse que iria para cama, ele me pegou pelas duas mãos e aproximou o rosto do meu, beijou a ponta do meu nariz e timidamente selou nossos lábios. Eu nunca havia beijado ninguém. E desde então ele se tornou meu porto seguro, juntamente com Gemma. Os dois era tudo para mim.

—Abre a porta, eu vou me despedir. —Falo de repente. Firme, já puxando a tranca da porta, em vão.

—Vamos nos atrasar, na verdade já estamos atrasadas, seus pais são ricos, mas não vamos abusar e fazer eles pagarem outro voo né? —Silvia fala rindo dando partida no carro.

—Para o carro! Para! Por favor... —As lágrimas começam a rolar pelo meu rosto, mais do que antes, mais do que o planejado, mais do que eu queria. Muito mais. Eu não podia ir sem me despedir dele. Não era justo.

Fico de joelhos no banco e encosto meu rosto no vidro traseiro, eu conseguia ver seu rosto vermelho, coberto de lágrimas, as duas mãos no cabelo, gritando de um lado para o outro, eu conseguia ver Gemma com uma mão em seu ombro e Tia Meire vindo na direção dele com um copo d'água, eu podia escutar seus gritos ficando distantes, eu conseguia ver tudo.

E eu só sabia chorar.

Eu estava indo para tão longe de casa.

Beside You Where stories live. Discover now