Uma descoberta terrível

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- Bem, agora vocês conseguiram - foi a saudação de Mary ao juntar-se a eles no Vale. A senhorita Cornelia estava em Ingleside, mantendo um conclave tenso com Anne e Susan, e Mary esperava que a conversa fosse longa, já que fazia duas semanas desde a última vez que ela teve permissão de brincar com os colegas no querido Vale do Arco-Íris.

- Conseguimos o quê? - perguntaram todos menos Walter, que sonhava acordado, como de costume.

- Eu me refiro aos filhos do ministro - disse Mary. - Foi um absurdo o que vocês fizeram. Eu não teria feito isso por nada no mundo e isso que eu não fui educada em uma casa ministerial, eu não fui educada em lugar nenhum.

- O que foi que nós fizemos? - perguntou Faith, preocupada.

- O que fizeram? E ainda perguntam! É pavoroso como as pessoas fofocam. Creio que isso arruinará a reputação do pai de vocês na congregação. Ele jamais conseguirá restaurá-la, pobre homem! Todos estão culpando-o e não é justo. Se bem que nada é justo nesse mundo. Vocês deveriam se envergonhar.

- O que nós fizemos? - perguntou Una mais uma vez, desesperada. Faith não disse nada e seus olhos de um castanho dourado fulminavam Mary.

- Oh, não se façam de inocentes - disse Mary secamente. - Todo mundo sabe o que vocês fizeram.

- Eu não - interveio Jem, indignado. - É melhor você não fazer a Una chorar, Mary Vance. Do que você está falando?

- Suponho que vocês não saibam, uma vez que acabaram de voltar de viagem - disse Mary, diminuindo o tom consideravelmente. Jem sempre conseguia controlá-la. - O resto do vilarejo sabe, acreditem em mim.

- Sabe o quê?

- Que Faith e Una cabularam a escola dominical semana passada e limparam a casa.

- Não é verdade - responderam veementemente Faith e Una.

Mary as encarou com altivez.

- Não pensei que vocês iriam negar, depois de terem me dado uma bronca por mentir. De que adianta negar? Todos sabem que é verdade. O ancião Clow e a esposa testemunharam. Estão dizendo que isso destruirá a igreja, mas isso já é um exagero. Vocês são pessoas boas.

Nan Blythe levantou-se e abraçou as perplexas Faith e Una.

- Elas foram boas o suficiente para acolher, alimentar e dar roupas para você quando estava passando fome no celeiro do senhor Taylor, Mary Vance - disse. - Você deveria ser grata.

- Eu sou grata - retrucou Mary. - Você saberia se tivesse me ouvido defendendo o senhor Meredith a todo custo. Eu dei um nó na língua de tanto falar bem dele esta semana. Repeti e repeti que não é culpa dele, as filhas terem limpado a casa no domingo. Ele estava fora e elas sabiam que não deveriam ter feito isso.

- Mas não é verdade - protestou Una. - Nós limpamos a casa na segunda. Não é mesmo, Faith?

- Claro que sim - disse Faith, com os olhos faiscando. - Nós fomos à escola dominical, apesar da chuva, e não havia ninguém, nem mesmo o ancião Abraham, apesar de todo o papo sobre cristãos.

- Foi sábado que choveu - disse Mary. - Domingo foi um dia lindo, eu não fui à escola dominical porque estava com dor de dente, mas todos os outros foram e viram as suas coisas no gramado. E o senhor Abraham e a esposa viram vocês chacoalhando os tapetes no cemitério.

Una sentou-se em meio às margaridas e começou a chorar.

- Olha, isso precisa ser esclarecido - disse Jem, resoluto. - Alguém cometeu um erro. Não choveu no domingo, Faith. Como você confundiu o sábado com o domingo?

- A reunião da igreja foi na quinta-feira à noite - exclamou Faith -, e o Adam caiu na panela de sopa na sexta quando o gato da tia Martha o perseguiu, o que arruinou o jantar, e no sábado apareceu uma cobra no celeiro que o Carl recolheu com uma forquilha e levou para fora, e no domingo choveu. Ora essa!

- A reunião foi na quarta-feira - disse Mary. - O ancião Abraham não podia realiza-la na quinta e por isso foi mudada para a quarta. Você está um dia adiantada, Faith Meredith, e vocês trabalharam no domingo.

De repente, Faith gargalhou.

- Pelo visto, sim. Que piada!

- Não é uma piada para o seu pai - disse Mary com seriedade.

- Vai ficar tudo bem quando as pessoas descobrirem que foi um engano - disse Faith, sem se preocupar. - Nós explicaremos tudo.

- Você pode se explicar até ficar sem ar - disse Mary -, só que uma mentira como essa viaja muito mais depressa do que você jamais conseguiria. Eu conheço mais do mundo do que você imagina. Além disso, muitas pessoas não vão acreditar que foi um engano.

- Elas acreditarão quando eu explicar tudo - disse Faith.

- Não dá para explicar para todo mundo - disse Mary. - Não, eu acho que você desgraçou o seu pai.

A noite de Una foi arruinada por conta daquela reflexão sombria, no entanto, Faith recusou-se a se deixar abater. Ela havia bolado um plano que iria resolver tudo. Assim, ela deixou o passado e seus erros para trás e tratou de desfrutar o presente. Jem foi pescar e Walter saiu de seus devaneios para descrever os bosques do céu. Mary aguçou os ouvidos e ouviu respeitosamente. Apesar do receio do menino, ela adorava a maneira como ele "falava como nos livros". Sempre lhe dava uma sensação gostosa. Walter estivera lendo Coleridge naquele dia e imaginou um céu onde:

Havia jardins reluzentes com riachos sinuosos
Onde floresciam inúmeras árvores perfumadas
E florestas tão ancestrais quanto as colinas
Em meio a clareiras relvadas e ensolaradas.

- Não sabia que existiam florestas no céu - disse Mary, respirando fundo. - Achei que só existiam ruas, e ruas, e mais ruas.

- É óbvio que há florestas - disse Nan. - A mamãe e eu não conseguimos viver sem árvores, então de que adiantaria ir para o céu se não existisse nenhuma árvore?

- Há cidades, também - disse o jovem sonhador -, cidades esplêndidas, coloridas como o ocaso, com torres safiras e cúpulas irisadas. São feitas de ouro e diamante... Ruas inteiras de diamantes, ofuscantes como o sol. Nas praças há fontes de cristal beijadas pela luz e o asfódelo floresce por todas as partes. É a flor do céu.

- Fantástico - disse Mary. - Vi a rua principal de Charlottetown uma vez e fiquei impressionada, mas suponho que não seja nada em comparação com o céu. Bem, a maneira como você conta faz tudo parecer maravilhoso, porém, não soa um pouco chato, também?

- Ah, acho que poderemos nos divertir um pouco quando os anjos não estiverem olhando - disse Faith tranquilamente.

- O céu é cheio de diversão - declarou Di.

- Não é o que diz a Bíblia - exclamou Mary, que vinha lendo tanto o Livro Sagrado nas tardes de domingo sob o olhar atento da senhorita Cornelia que agora se considerava uma autoridade no assunto.

- A mamãe diz que a linguagem da Bíblia é figurativa - explicou Nan.

- Isso quer dizer que ela não é correta? - perguntou Mary, esperançosa.

- Não... Não exatamente... Acho que quer dizer que o céu será do jeitinho que você gostaria que fosse.

- Gostaria que fosse igualzinho ao Vale do Arco-Íris - disse Mary -, com todos vocês para conversar e brincar, isso seria bom o suficiente para mim. De qualquer forma, só iremos para o céu depois que morrermos, ou talvez nem assim, então por que se preocupar? Aí vem o Jem com um monte de trutas e é a minha vez de fritá-las.

- Nós deveríamos saber mais sobre o céu do que o Walter, já que somos filhos do ministro da igreja - disse Una, enquanto voltavam para casa naquela noite.

- Nós sabemos tanto quanto, só que o Walter consegue imaginar - disse Faith. - A senhora Elliott disse que ele puxou isso da mãe.

- Gostaria que não tivéssemos confundido o dia de domingo - suspirou Una.

- Não se preocupe. Pensei em um plano ótimo para nos explicarmos para todo mundo. Espere até amanhã à noite.

Vale do Arco-Íris Where stories live. Discover now