Dono do Mato

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          Meu avô dizia que nunca deveria se caçar no dia dos mortos. Dizia ainda que era um conselho dos "antigos", o qual sempre seguiu. Seu pai havia passado esse conhecimento a ele quando ainda era uma criança, em ocasiões que o levava à mata para ensiná-lo os matizes que perpassam a sutil arte da caça, uma tradição que atravessa gerações em nossa família, assim como é a pesca ou o almoço de domingo em outras.

          Ele nos contava ainda como para ressaltar o conselho, estórias de incidentes ocorridos a quem outrora o desobedeceu. Advertia que a mata tinha seus donos e que, sempre que fossemos entrar em uma, tínhamos que pedir licença ao "Dono do Mato", principalmente se fosse uma mata desconhecida e longe das ações humanas.

          Eu não sabia o que isso significava, o que ele queria dizer com "Dono do Mato", mas quando ele falava as palavras tinham uma aura sombria e mística, que fazia-nos imaginar qualquer coisa de folclórico, algo ambíguo, entre o bizarro e o encantado.

          Claro, eu não acreditava no que ele dizia — não o fazia, por respeito às suas crenças — era por isso que eu não saia para caçar em dia de Finados, não porque eu acreditava em suas crendices vistosas e estrambólicas, mas atendia, em respeito a seus sentimentos de acumulador ancião.

          Nesta véspera de feriado em especial meu avô tinha ido à cidade para casa da minha mãe por conta de alguns exames que precisava fazer. Quem estava na chácara era meu tio e minha avó. À tarde perguntei a meu tio se queria ir caçar comigo, disse que sairia às três da madrugada. Perguntei a ele enquanto preparava o rifle. Ele me disse que estava cansado e que eu poderia ir sozinho. Informou-me que a lanterna estava no depósito e ainda se gabou que na sua última caçada, havia pegado um cervo enorme, que eles passaram praticamente uma semana servindo-se da carne suculenta e macia. Desafiou-me então a pegar um maior. Disse a ele que pegaria um maior, mas que não teria como trazer para casa sozinho e que o acordaria para vir buscar o cervo comigo. Ele concordou e apertou minha mão selando a aposta com um sorriso sínico de canto.

          À tarde, estava polindo minha quarenta e quatro a ponto de tentar ver-me na madeira envernizada da coronha, quando senti um cheiro de fumo adocicado banhar-me a nuca, contornar-me o rosto e entrar-me pela narina. Minha vó então surgiu pontualmente à porta da frente como o espectro prenúnciano desbotado e doce, havia anunciado; com uma voz preocupada e o cachimbo de barro com cabo de taquarí, pendurado entre os lábios — pôs-se a falar sem tirar o pito da boca, expelindo fumaça como uma locomotiva.

          — O que está fazendo com isso garoto? Não vai caçar hoje vai?

          — Bom, vou. O vô não está aqui, acho que ele não se importaria se eu fosse né? Claro que ele não precisa saber que fui hoje, né não vó? Podemos dizer que fui amanhã, já que ele chega só no final de semana. O que me diz hein vó?

          Ela me lançou um olhar torto de desaprovação enquanto prosseguiu para sua cadeira de balanço que ficava estrategicamente posicionada no pátio da frente da casa, com vista apenas para o caminho de pedra entre as gramas até o portão e à floresta ao redor.

          — Olha meu filho — Senti logo aquela aura de convicções alçadas em tradições esquecidas quando ela começou a falar —, hoje é dia de finados, até mesmo os passarinhos param de cantar. Não se vê bichos no mato. É um dia de descanso, principalmente para os mortos. Você não vê problemas em perturbar os mortos no seu dia? Até a natureza respeita o dia de hoje meu filho, você também deveria respeitar. Além do mais, você pode ficar panema. Sempre acontece com quem vai caçar em dia de finados. — Sua voz saia tal qual a do meu avô, embebida em mistérios e superstições locais passadas através de confiança ignorativa que eu nunca levei muito a sério.

          — Acho que os mortos não vão se importar vó, além do mais, vou mandar mais um para a companhia deles! No mínimo ficarão felizes. E vou testar o rifle antes, não se preocupe, acho que não tô azarado hoje não.

          Lembro que minha vó me repreendeu ao passo que dei uma leve risada. Me disse que eu não deveria brincar com esse tipo de coisa. No fim me aconselhou a tomar cuidado e pedir licença para o Dono do Mato quando eu fosse entrar. Eu concordei para não desrespeitá-la e, para que não se preocupasse comigo.

          O relógio despertou às duas e quarenta e cinco da madrugada. Estava animado pois a lua cheia brandia no céu, realmente era meu dia de sorte — pensei ao vê-la iluminar à noite. Isso significava que conseguiria enxergar um palmo além do nariz sem a lanterna, então não seria tão difícil assim, à caça. Tomei cuidado para não fazer barulho e não acordar a minha avó, que tinha o sono leve dos anciões. Meu tio? Bom, poder-se-ia derrubar a casa em baixo que ele não acordava.

          Saquei o rifle que estava encostado na parede do quarto, do lado da mesinha de cabeceira e busquei meu chapéu de caça que havia ganhado do meu avô junto com uma faca que pertencera ao pai dele. Infelizmente o chapéu não era vermelho igual ao do Caulfield. Não sei de onde o velho Salinger tirou esse chapéu, mas cá entre nós, nunca encontrei um chapéu vermelho de caça dando sopa por aí. Apanhei a caixa de balas que havia deixado na gaveta da mesinha e pus na pochete, pus meu chapéu cor de aspargo, o qual tinha um apreço tremendo por tê-lo desde a minha primeira caça. Pendurei a faca na cintura, saquei a lanterna e saí pela porta dos fundos em direção à mata; passei pelo lago que refletia um luar camarada dos caçadores e pensei: "realmente é meu dia de sorte".

          Ao pisar na mata, as palavras do meu avô atravessaram minha cabeça como quando uma brisa fria que chega do nada faz estremecer da nuca aos pés, como um prelúdio de agouro repentino. Senti um medo agudo como se pequenas agulhas espetassem minha carne. Minha avó então surgiu meio esfumaçada tal qual o cachimbo de barro que reverberava em sua boca: "[...] Sempre que entrar na mata você tem que pedir licença ao Dono do Mato, meu filho". Parei por um momento e fiquei estático, com aquele receio espesso que havia sido enraizado em mim por tradições já desprendidas de suas fontes originárias, receio de adentrar aquela mata enorme e misteriosa que minha vó pintava e cultuava em seus rituais antigos e desapercebidos, um receio que havia sido impregnado na minha cabeça sem que eu percebesse, através de estórias contadas desde que eu era criança. — E lá estava eu, diante da mata, com arrepios até a nuca, duvidando por um breve e alígero momento das minhas convicções mais profundas, formadas em anos de ceticismos acadêmicos rigorosos, mas que não eram páreos para as liturgias misteriosas de dois anciões vistosos e consumidos pelo tempo.

          Naquele momento em que eu estava ali parado, me peguei pensando o quanto aquilo era poderoso — os costumes impregnados no meu subconsciente, os quais eu achei que já haviam se liquidado há tempos, mas que estavam todos ali, flutuando; rebuliçando em minha cabeça como vermes que se alojaram no cérebro.


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O Dono do Mato - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora