"IMPURA"

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Levei o garfo a boca degustando o ultimo pedaço da minha refeição.

Depositei o garfo sobre o prato e o passei para o outro lado. A portinhola se mexendo e fazendo o barulho costumeiro de coisas indo e vindo era um barulho que estava começando a gostar, indicava que estava ganhando algo.

Era estranho pensar que estava "começando a gostar" de algo. Era ainda mais estranho pensar que a comida que havia acabo de degustar estava tão boa - ao contrário da minhas ultimas incontíveis refeições que era algo tão sem graça como a minha vida ali - que parecia que ele estava me presenteando com uma comida especial.

Encostei as costas na parede as minhas costas, agora só me restava esperar a hora da água e a pior hora de todas, a hora da visita. Era com certeza a pior hora. A hora em que o barulho que eu ouvia era do cadeado sendo destrancado e a porta rangendo indicando que estava sendo aberta, não que eu precisasse do barulho para identificar, a porta estava sempre no meu campo de visão.

O cubículo em que eu vivia era minúsculo, havia ali, um colchonete velho e tão fino que se eu dormisse diretamente no chão não faria diferença, um balde para necessidades e uma porta de aço grande e estranhamente ameaçadora, talvez o fato de não ter maçaneta do lado de dentro me assustasse.

Eu já havia perdido a contagem dos dias que passava nesse inferno, eu já estava me esquecendo de como tudo começou, assim como estava esquecendo de como era a vida fora dali.

Eu já não sabia mais o que inventar para me distrair da tristeza e desespero que eu sentia, mesmo tendo a sensação que já começava a me acostumar a isso. Só uma coisa eu nunca iria me acostumar, a maldita hora da visita.

A portinhola balançou mais uma vez indicando que o copo de água diário estava ali, um copo descartável. Eu tinha que beber a água rápido e devolver o copo se isso não acontecesse a visita viria mais cedo e durava mais, era sempre assim quando desobedecia às poucas ordens que recebi.

1 - Seja boazinha.

Eu tentei não ser, mas a punição era insuportável, cedi.

2 – Devolva todos os objetos que recebe na refeição.

Não que eu fosse fazer muita coisa com plásticos descartáveis, talvez eu conseguiria me cortar com o plástico e sangraria até morrer? Eu não saberia responder e temia chegar no momento em que iria ter que testar isso.

3 – Nunca olhe pela portinhola, você poderá ficar cega.

Não quis arriscar.

Fim.

Essas eram as malditas regras. E eu a odiava tanto quanto odiava a situação em que estava vivendo.

Tomei a água a goles lentos e pequenos, eu sabia que a visita estava chegando, eu não queria isso.

Eu rezei nos primeiros dias, rezeis dias e noites – mesmo não tendo noção de quando era um ou outro – mas percebi que rezar era tão inútil quanto tentar escapar de uma sala de paredes e porta de ação.
Eu gritei, gritei tanto que fiquei dias sem voz, era inútil, no fundo eu sabia, ninguém iria me ouvir. E me pegava pensando: se alguém ouvisse iriam fazer algo para me ajudar? Iriam ter coragem de enfrentar o inferno para ajudar um desconhecido?

Estava encolhida no canto, meus ossos visíveis em uma magreza exagerada devido à má alimentação por tanto tempo. Abraçava minhas pernas desejando que a porta não se abrisse, mesmo sabendo que iria abrir, sempre abria. Sempre.

Fechei os olhos assim que ouvi o som do cadeado sendo aberto, pude ouvir a porta se abrir e depois se fechar, ele estava ali, não iria encara-lo. Seus passos eram silenciosos, mas eu podia sentir sua presença.

- Minha doce criança! – Sua voz soava como unha na lousa para mim, era um som que mesmo calmo e disfarçado com simpatia me fazia arrepiar, me fazia tremer e me encolher ainda mais. – Minha doce criança.

E eu senti sua mão em meu rosto, erguendo para que eu o olhasse nos olhos, nunca abria os meus olhos, nunca. Senti se aproximar, seu hálito tocando minha bochecha e eu só queria atacá-lo. As vezes que tentei, partes do meu corpo foram quebrados, parei de tentar.

Ele estava demorando mais do que de costume, algo me dizia que ele estava feliz nesse dia em particular, eu sentia nojo enquanto ele se realizava usando meu corpo inerte para sua diversão, minhas lagrimas escorreram nos primeiros dias, depois parou, era como se eu morresse no momento do ato e revivesse assim que ele se retirava.

- Minha doce criança. – Ele não havia se afastado do meu corpo ainda, mantinha-se deitado sobre mim, apertei ainda mais os olhos. – Minha doce criança, você percebeu o quanto é especial para mim? – Eu não iria responder, eu nunca respondia. – Hoje eu dividi com você a minha própria refeição, minha doce criança. Hoje você comeu o melhor que eu posso oferecer.

Ele acariciava meu rosto mais uma vez e eu só queria que aquilo acabasse logo, que ele fosse embora e me deixasse naquela cela sozinha.

- Eu vou começar a alimenta-la assim agora, - Ele sorria, eu sabia que sorria. – Eu sei que você gostou da comida de hoje, eu sei que gostou, você vai gostar ainda mais. Você vai gostar minha doce criança.

Se levantou devagar e acariciou todo o meu corpo nu antes de se levantar e caminhar de volta a porta, apenas quando ouvi o 'clic' do cadeado abri os olhos.

Me encolhi ainda deitada sobre o podre colchonete, eu preferia dormir no chão, mas não estava conseguindo me mexer, não conseguia reagir, suas palavras sem sentido ecoavam pela minha mente e eu batia a cabeça sobre o fino colchonete a dor não era nada ao que eu estava sentido.

Se eu dormisse, acordaria e tudo iria se repetir, como sempre. Eu não queria dormir porque não queria acordar. Eu torcia para não acordar, mas sempre acordava, estava tanto tempo ali que até meus sonhos haviam sumido, agora só tinha pesadelos com o que vivia acordada, era apenas uma repetição do meu subconsciente. Eu odiava até o meu subconsciente.

Acordei assustada, não sabia o porquê, entendi assim que me sentei, a náusea se revelando ser o motivo, me arrastei até o balde e vomitei, não tinha muito o que pôr para fora, mas eu não conseguia parar, sucos gástricos começaram a sair e eu continuava a despejar tudo que havia dentro de mim, as lagrimas que escorriam era um ato involuntário devido ao vomito. Quando enfim acabou, me deitei no chão, ali mesmo, próximo ao balde, sendo tomar pelo odor forte do meu próprio vomito.
Eu só queria um copo de água, eu não teria, assim como não teria o meu banho, algo que acontecia uma vez por semana, um banho patético, onde um balde de água era deixado ali e eu tinha que me virar, depois ganhava um pano para me secar e secar o chão.

Quão patética minha vida tinha sido transformada? Quão inútil eu era na história da humanidade para ser resumida a isso? Eu não era nada. Essa era a única conclusão que dava para chegar, eu não significava nada. Eu era o nada.

A portinhola se abriu e lá estava mais uma vez o bife, pelo cheiro eu sabia que era tão bom quanto o anterior, mas não consegui levar a boca, estava enjoada demais.

- Água! – Minha voz era tão fraca quanto eu. – Água.

Continuei deitada e a comida ficou ali, sem ser tocada, eu teria que devolver o prato se não ele entraria para me punir, eu não iria aguentar.

Me arrastei mais uma vez até o prato, o bife não estava nada atrativo para o meu estomago enjoado, me controlei para não vomitar mais uma vez, devolvi o prato cheio, era primeira vez que fazia isso, não sabia qual seria a sua reação.

E odiei descobrir.

A porta se abriu e eu estava de bruços no chão, temendo pela minha punição.

- Minha doce criança. – Ele parecia mesmo preocupado, mas eu sabia que não estava, não de verdade. – Minha doce criança, o que aconteceu com você? Eca.

Ouvi ele regurgitar, acho que havia descoberto o meu balde nada atraente.

- Droga, doce criança. – E ele estava furioso. – Que merda é essa?

E pude ouvir quando ele acertou, acredito que com o pé, o balde que explodiu na parede fazendo explodir vomito para todos os lados, principalmente em mim.  

- Você vomitou o meu almoço especial? – Sua fúria estava presente e eu tremeria, mas não tinha forças nem para isso mais. – MEU ALMOÇO ESPECIAL?

Ele puxou meu braço me arrastando até ele.

- OLHE PARA MIM! – Gritou. – OLHE PARA MIM.

Abri os olhos apenas por medo e desejei nunca ter aberto, a imagem do homem a frente era assustadora, cheio de cicatrizes e inchaços isso apenas no rosto porque o corpo estava coberto por um sobretudo branco e uma calça branca.

- Como você ousa rejeitar o almoço de hoje? E expelir o almoço especial que te fiz ontem? – Perguntou e eu sabia que dessa vez ele esperava por uma resposta.

- Eu não sei... – Foram as palavras que consegui expressar.

- Eu fiz especialmente para você, sua mal agradecida! – Seus olhos eram pura fúria e suas mãos apertavam meus braços, em um movimento rápido ele me pois de pé, me sustentava na posição. Eu sabia que se me soltasse eu desabaria. – Eu fiz para você! Eu achei que você fosse especial. Eu achei que você fosse merecedora. Mas não, você é como todas as outras, impura. IMPURA!

Ele me empurrou e apesar do impacto ter sido forte devido ao som que meu corpo ocasionou sobre o chão eu não senti a dor, eu já não sentia mais nada.

- Eu achei que era você, achei que você era a minha doce criança! – Seu tom agora era pura lamuria e eu não conseguia mais fechar os olhos, ele se curvou e nesse momento pareceu indefeso, mas eu não tinha força nenhuma. – Você me enganou, você me enganou.

Repetia enquanto andava de um lado para o outro, dois passos para um lado, dois para o outro. Eu estava tonta, sentia que iria desmaiar, mas minha mente se recusava a desligar, eu não entendia o que ele tanto falava, eu não entendia essas novas versões de si que se revelava para mim.

Me empurrando com muito esforço consegui me sentar, ele parou a caminhada e parou de resmungar quando me lançou o olhar que fez minha espinha congelar. Ele iria me matar, eu sabia disso.

- Olha o que eu fiz por você minha doce criança. – A calmaria em sua voz assustava tanto quanto a iria a minutos atras.

Ele se virou de costas para mim e abriu o sobretudo revelando suas costas, era uma visão ainda pior do que seu rosto, haviam ali marcas, de um lado da coluna a parte lombar estava em carne viva. Eu vomitei no meu próprio colo. O que eu estava vendo?

- Você vê? – A ferida era nova, mas podia ver que do outro lado da coluna a parte lombar estava com um enorme curativo. – Eu fiz isso por você, minha doce criança.

Ele subiu novamente o sobretudo e me encarou mais uma vez, ignorando completamente o meu estado deplorável, eu sabia que havia desistido de mim.

- Você foi só uma perca de tempo como todas as outras. – A decepção estava ali em sua voz. – Eu acreditei de verdade que você fosse especial.

Ele se aproximou de mim, se abaixou ficando com os olhos na altura dos meus, levou a mão a minha boca a limpando.

- Ah minha doce criança, - Foi a vez do sarcasmo. – Você é tão inútil quanto todas as outras. Você é fraca e não é digna de mim. Acreditei mesmo que seria diferente, sempre tão submissa a mim, achei que estaria pronta para me receber, pronta para se alimentar do meu ser, pronta para receber o meu poder. Pronta para receber a carne do seu verdadeiro salvador. Mas você não é digna de tal divindade.

Sua risada soou alta e grossa, seguida de uma tosse que pude identificar ser de dor.
A minha náusea só aumentava a cada palavra que ele proferia.

- Eu era o seu salvador, mas você não foi digna de tal merecimento, você é só mais uma reles mortal sem valor algum.

Nada fazia sentido, minha cabeça latejava, meus olhos se mantinham abertos apenas por medo de se fechar.

- Você não tem mais utilidade nenhuma para mim. – Foi um aviso e seus olhos me encarava mais uma vez com frieza e mais uma vez eu sabia que era o meu fim.

Sua mão tapou a minha boca, junto ao meu nariz.

Minhas lagrimas que há tempos haviam me abandonado, brotavam em meus olhos refletindo todo o meu desespero, refletindo toda a minha dor. Eu não estava mais com medo, estava apenas com frio, um frio tão forte que me fazia encolher mais e mais. Eu não recebia ar e nem desejava por ele. Eu não era digna e nunca me senti tão bem por não ser. Meus olhos foi se fechando aos poucos, mas as lagrimas continuavam a escorrer, elas representavam os meus gritos de dor, humilhação, tristeza, ódio e alivio que eu sentia. Ele representava o meu fim.

Ela representava que eu não era digna.

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⏰ Last updated: Mar 20, 2023 ⏰

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