CAPÍTULO VINTE E QUATRO

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   O garoto sentado na cadeira atrás da pequena mesa da cozinha parecia estranhamente confortável, percebeu Akemi, diferente dos outros dois.

   Parecia que ela tinha acertado uma caixa de marimbondo com um pedaço de madeira. 

   ㅡ Talvez um pouco? ㅡ retrucou Akemi com cuidado.

   Diversas vezes ela notara o quão distante os aprendizes eram um dos outros, sempre eram os mesmos grupos, duplas ou trio; quando havia desembarcado em Tokyo, também percebeu durante o caminho até a floresta Aokigahara que o hogosha que estava dividindo o carro com eles não dissera nada o caminho inteiro, inicialmente tinha deduzido que fosse pelo profissionalismo, agora já não tinha tanta certeza. 

   Ren se serviu de um copo d'água. 

   ㅡ Você tem um espírito guia, certo? 

   Como um aceno ela confirmou. 

   ㅡ Existe algo nos seres espirituais, um fenômeno, que nos conecta uns aos outros, assim como acontece com os espíritos guia ㅡ continuou o garoto. ㅡ Há duas versões desse fenômeno, uma que aproxima e uma que repele. Aqui na Academia nós aprendemos sobre ele na primeira aula de harmonia espiritual que temos. Você não seguiu o mesmo processo que a maioria de nós, por isso não sabe. 

   "Chamamos esse fenômeno de Ligação de Cruzamento. Cada um dos seres espirituais possui um polo de energia, e um polo pode reagir a outro de formas distintas. Quando os polos são diferentes e não existe nenhum traço compatível os indivíduos naturalmente se repelem e estar na presença um do outro é como uma tortura. Mas quando os polos são semelhantes…"

   Um som brusco provocado chamou a atenção de Akemi, ao olhar para Hikari viu que a garota estava de joelhos, próximo ao fusuma, a cabeça apoiada na madeira entre as folhas de papel decoradas. 

   ㅡ Quando são semelhantes ㅡ continuou Ren. ㅡ Existe a possibilidade, caso os polos se cruzem, de surgir uma ligação de cruzamento. 

    ㅡ O laço formado pela ligação é muito forte, seus efeitos variam de acordo com o tipo da laço. Todos os seres são diferentes um dos outros, naturalmente a ligação também ㅡ Kurama assumiu a explicação de Ren, enquanto tirava a jaqueta e a colocava sobre as almofadas. ㅡ Essa não é uma ligação por escolha, você não tem o direito de escolher se a quer ou não, ela simplesmente acontece, por isso nos mantemos longe um dos outros.

   Akemi franziu a testa. Ela havia entendido que a ligação não era feita a partir do livre arbítrio, mas ainda sim lhe parecia extremo se isolar por causa disso.

   Como se tivesse na cabeça dela, Kurama sorriu, provavelmente já imaginando o que ela pensava.

   ㅡ Nem todos querem ter um laço ㅡ disse. ㅡ O laço cria um vínculo de dependência emocional entre os envolvidos, como se recebessem continuamente um pouco um do outro. Um seria capaz de colocar a mão no fogo caso o outro estivesse perto de se queimar; se atiraria na frente de uma bala sem pensar duas vezes; o sofrimento do outro seria como o seu próprio. ㅡ O choque paralisou Akemi. Ela se lembrou imediatamente, com horror, quando Hikari esbarrou em uma panela de água fervente na única vez que estiveram na fornalha da cozinha e que Akemi se jogou sobre a garota para que a água quente não a queimasse, se naquele dia a sra. Hanna não tivesse chegado na hora, Akemi teria sido banhada com muito mais do que algumas gotinhas. Assim como em todas as outras vezes depois dessa, ela não se perguntou nenhuma vez do motivo pelo qual se sentia inclinada a proteger Hikari. ㅡ Não existe um tempo pré determinado para que a ligação aconteça, pode se firmar em semanas ou anos, mas não pode ser rompido mesmo que os indivíduos se distanciem. A única forma de romper o laço da ligação é a morte de um deles ㅡ Akemi notou, mesmo que o sorriso de Kurama não tivesse sido desfeito, sua expressão mudou para algo que ela não sabia descrever. O canto da boca do rapaz tremeu sutilmente. ㅡ E a dor do rompimento é inimaginável. Quem em sã consciência iria querer uma ligação dessa? 

   Sim, quem iria querer?

   Akemi olhou para Hikari, a garota tinha afastado a cabeça do fusuma, os olhos cinza-azulados estavam assustadoramente azuis diante da ansiedade que transbordava dela. Parecia uma criança que esperava a resposta da mãe após pedir que comprasse seu doce preferido.

   ㅡ Nós temos isso, não temos? ㅡ Perguntou Akemi, sua voz falhou um pouco. 

   Hikari não confirmou, mas Akemi aceitou seu silêncio como uma confirmação mais do que o suficiente. 

   Ela não sabia o que dizer, não sabia o que fazer. Não queria aquela ligação, não queria aquela dependência, não queria a dor inimaginável que sentiria caso aquilo fosse rompido. Olhar para Hikari pela primeira vez doeu, nos olhos da garota Akemi só conseguia ver a mãe falecida.

   Sobretudo o que não queria relacionado a aquela ligação estava o fato de que não queria se importar com mais ninguém, porque não aguentaria perder alguém importante de novo.

   Ela não queria aquilo.

   Akemi se levantou desviando seu olhar, atordoada demais para conseguir permanecer ali. Sem dizer qualquer palavra, começou a caminhar até o corredor que levava à porta dos fundos.

   Hikari se ergueu do tatami as presas.

   ㅡ Akemi ㅡ chamou, tentando interceptá-la, mas a garota desviou do seu toque.

    ㅡ Na próxima vez você vai colocar a sua mão no lugar da minha ㅡ Akemi recitou as palavras que Hikari havia lhe dito na cozinha. ㅡ É, acho que sim.

   Sem se demorar, correu para a porta dos fundos. Não queria ficar mais tempo ali, nem mesmo calçou seu all star depois que cruzou a soleira da porta e a fechou dispensando gentileza.

    Assim que se virou para descer os degraus do engawa, esbarrou com força em alguém no caminho. Ao olhar para cima conseguiu reconhecer o rosto do companheiro do Kurama, Shin. Mas o rosto jovem do rapaz alto do qual Akemi se lembrava vagamente, os olhos heterocromáticos com fendas e o corte negro foram substituídos por um rosto animalesco. A verdadeira face de um inugami. 

   Pânico invadiu o peito dela como o tiro de uma bala, fazendo-a se chocar contra a cerca de madeira do engawa ao recuar.

   Um grito ressoou em sua cabeça de forma alta e clara, um urro de pura dor, ódio e luto. Era repleto de um sentimento intenso e maciço que Akemi nunca havia sentido na vida. Um sentimento alheio.

   Sentido seu coração acelerar e as lágrimas escorrerem por sua bochecha conforme o pavor a invadia, Akemi saltou os degraus de madeira. Assim que suas meias tocaram a grama, ela correu.

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IY- Ao Cair Da NoiteNơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ