1 - A superfície

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Tem um gato morto na janela.
Ele está,
É sério,
Lá na janela.
Morto.
Tem o corpo de um gato na janela
Tem um gato morto na porra da janela.

Catarina entrou em um transe onde repetia a descrição da situação mentalmente, tentando tornar a situação mais aceitável, palpável. Como se reage à isso?

Minha janela, mas não meu gato. Isso é menos pior, certo?, pensou.

Era como se o choque tivesse feito seu corpo reiniciar e ela estivesse congelada em uma imagem.

O animalzinho não jazia exatamente na janela, mas em uma pequena extensão externa posta ali para colocar vasos de flores, não cadáveres. No primeiro instante, pensava apenas nisto, não os comos e porquês para ele ir parar ali, em um apartamento no 5° andar.

Não possuía nenhum sentimento específico, a dúvida sobre o que deveria sentir impediu qualquer um de se manifestar. Raiva? De quem? É impossível sem poder direciona-la à alguém. Talvez tristeza pelo bicho, porém era igualmente complicado nunca tendo o visto antes. Além de possuir leve antipatia por gatos no geral, seus olhares afiados pousando nela como se enxergassem fundo sua alma, como um carnívoro olha para uma presa, e as unhas que cravariam fundo na carne de qualquer coisa que se mexa a incomodavam.

Aliás, por que se perguntava isso com tanta determinação em encontrar uma resposta satisfatória? Fora ela, a casa estava vazia, ninguém veria se desabasse em choro, ou simplesmente não fizesse nada. Ninguém além do gato para julgá-la, com os olhos vidrados e grudados no pescoço torcido de modo que conseguiria olhar as próprias costas. Após perder tudo o que o tornava ameaçador, se igualava à garota de uniforme diante de si.

Poderia fazer literalmente qualquer coisa e ninguém veria.

Congelados juntos, apenas ela e o corpo. Catarina e seu (não tão novíssimo) gato de presente.

Ela reparou na respiração normalizando conforme a ficha caia, lenta como uma uma moeda em uma máquina de vendas velha. Uma máquina de garra, onde os prêmios são gatinhos de pelúcia surpresa (a surpresa é que são gatos de verdade, com as colunas e pescoços quebrados depois de serem pegos e derrubados novamente repetidas vezes, até alguma criança sortuda conseguir levar um e largar no caralho da janela de alguém). De repente, a ideia de uma pilha de felinos peludos subindo em cima uns dos outros pareceu, para Catarina, muito mais sem graça, repugnante.

Ele- ele não, aquilo, afinal um corpo não era mais nada do que foi quando vivo, e sim uma casca, um objeto que poderia ser levado para qualquer lugar e jamais reclamaria sobre pronomes de tratamento. Verdade! Cascas não precisavam de pena, então ela estava certa em não ter a “reação apropriada”, não é? Sim, exato! Como não pensou nisso antes? Deve ter sido o choque o culpado de impedir o raciocínio, e isso indica que houve sim uma overdose de emoções culminadas em confusão. Resolvido.

Estava gelado e rijo, ela constatou que mesmo quando vivo não devia ser bem-cuidado, com pelos ralos, de cores diferentes, magro e sem identificação, provavelmente não tinha dono e morreu de fome. De estômago vazio a ponto de retorcer. Maltratado e bastardo, ninguém sentiria sua falta.

Que diferença faz se há um gato a mais ou a menos no mundo?

Quando uma criança morre a maior decepção é saber que ela jamais poderia experimentar alegrias, saborear o mundo em sua completude para se tornar alguém único, mas que alegrias ou diferenciais um gato de rua poderia ter? É sem sentido desgastar seu psicológico com um animal que mal conhece, correto?

De repente, Catarina correu para o banheiro novamente, saindo de seu transe graças às ânsias de vômito. Passou vários minutos tentando vomitar algo, do jeito que tanto desejava, tossiu e chegou a ofegar, porém, com o estômago vazio, nada saiu.

Sabia que seu corpo desejava expulsar alguma coisa, tirar de perto, mas era impossível: seria preciso cavar muito mais fundo no estômago, bater nas entranhas, apertar diretamente seus nervos, abrir um buraco real no abdômen para retirar tudo que ansiava. Descartar sangue, músculos, órgãos e ossos até, enfim, chegar nesse algo. O algo real, que vai além de perfurar o cérebro ou o coração com uma bala.

Desistiu, aceitando a racional de que isso foi uma manobra do cérebro para obriga-la a se mover. Lavou o rosto avidamente e escovou os dentes, revitalizada. Realmente: não existe despertador melhor para os nervos do que encontrar cadáveres.

O relógio marcava 6:17, levaria meia-hora no caminho a pé até o colégio, o portão fecha às 6:45 e as aulas começam 15 minutos mais tarde. Já se atrasara, mais cinco minutos de enrolação não fariam diferença.

Pensou nas possíveis desculpas para dar ao porteiro, contudo duvidou que ele acreditaria de primeira. “Desculpa pelo atraso. Acordei, encontrei um gato morto na minha janela e precisei cuidar dele. Odeio quando isso acontece, mas sabe como é, né?

Mais tranquila, se aproximou do corpo. Sem nada próximo para forrar as mãos, encostou diretamente na pele fria e parcialmente pelada, arrepiando por inteiro. Segurou a patinha superior mais distante, tentando virá-lo de barriga para cima.

Foi a primeira vez que encostara em patas de animais, jamais teve bichos de estimação além de peixes no apartamento apertado, e mesmo estes acabavam morrendo em menos de duas semanas. A imagem clara dos peixes betas coloridos descendo pela descarga veio à sua mente.

Então pensou em o quê fazer depois de trazer o gato para dentro. Evitou, com todas as suas forças, imaginar o bicho indo por água abaixo na privada, em como seria prático deste jeito. Isto é problema para depois, agora a prioridade agora é trazê-lo.

Puxou lentamente, caso contrário aquilo penderia e cairia do prédio. Ainda na metade do processo, notou sangue coagulado na superfície do peito, antes encostado no parapeito. Em um susto, virou-o de vez rapidamente.

Um único corte se estendia da base do pescoço até fim da barriga. Apesar de ter coagulado, evidentemente sangrou bastante, ou seja, demorou para morrer e sofreu depois de ferido. Talvez fosse por finalmente notar que havia sido uma ação humana e não vontade natural, ou fosse por causa do quão escorregadia e ao mesmo tempo pegajosa estava a parte onde o corpo repousava, mas, em súbito desespero,

tire isso de perto de mim

Catarina apenas empurrou o cadáver do parapeito.

Algo foi ativado.

Após vê-lo despencar e seu pequeno crânio estourar como uma pinhata de miolos (surpresa!), ela caiu para trás também, se arrastou, sentando apoiada na parede paralela.

O que eu fiz?

“Tire isso de perto de mim”, dizia repetidas vezes, agora em voz alta, por longos minutos, como um mantra.

O coração acelerou, os arrepios evoluíram para tremedeira e as náuseas voltaram mais intensamente, mas ela não correu para o banheiro dessa vez, não conseguia, como se seus braços e pernas fossem feitos de gelatina, como se ela inteira fosse composta de gelatina de morango. Impotente, indefesa, manchada de vermelho sangue.

Por favor

Sua visão embaçou e escureceu, o mundo perdeu suas formas, tornou-se apenas uma grande massa indistinguível e ameaçadora, tentando cravar nela as garras e dentes, abrir o peito e observar o coração parar de bater com os olhos igualmente afiados, felinos.
Fique longe

                   Fique longe    Fique longe
  
Fique longe
                   
                                     Fique longe

               Fique longe
Fique      
Longe

Muito longe
Tanto quando o quinto andar fica da rua
Tanto quanto o céu fica do inferno            
Tanto quanto o pescoço fica da cintura
Tanto quanto o assassino fica da cena do crime,
Do corpo.
Fuja.

Isso não era nada. Não deveria ser. É casca. Casca que sangra e foi assim feita pela mão de outro ser. Mão. Uma mão que o fez explodir no asfalto. Uma mão que empunha uma faca. Uma mão que treme como se fosse explodir se encostar em qualquer coisa.

Mas e daí? Afinal, que diferença faz se há um gato a menos na Terra? Ou uma Catarina a menos?

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