V

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Metade do mundo não consegue compreender os prazeres da outra metade.

Jane Austen

As palavras de Pocah me deixaram atormentadas durante toda a noite, mal consegui dormir, tanto que às exatas seis horas da manhã eu já estava de pé antes das freiras tocarem o sino.

O café da manhã foi silencioso, eu estava aflita, provavelmente minha quase colega assassina sentiu isso visto que não tentou iniciar nenhum assunto. Eu não sabia quando ou onde seria esse maldito tratamento, mas a resposta não demorou para chegar, quando eu voltei da sala de recriação, um enfermeiro me esperava na frente do meu quarto, diferente das habituais freiras, ele sem dizer nada, somente prendeu meus braços com uma algema e me arrastou sem nenhuma delicadeza até uma sala afastada, que após ser aberta encontrei outras três pessoas, era um rapaz loiro com cabelos cumpridos e uma garota com cabelos cor de areia, os dois pareciam apavorados, até mesmo mais do que eu. O enfermeiro me colocou sentada em uma das cadeiras de ferro com mais um menos um metro de distância dos outros, e saiu, havia mais dois enfermeiros em cada ponta da sala e uma senhora de aparência severa atrás de uma mesa, ela se levantou e bateu a régua que segurava na outra mão para atrair a atenção totalmente para ela, não que já não estivesse.

- Me chamo Ofélia, irei tirar vocês do pecado.

Um silêncio perturbador se instalou na sala, tanto que nem a respiração dos pacientes se ouvia, pelo canto dos olhos, vi a garota de cabelos cor de areia que estava sentada à minha direita, arranhar discretamente o pulso com as unhas, deixando a pele avermelhada, um claro sinal de nervosismo, o rapaz não estava diferente, ele brincava com a barra da camisa branca que fazia parte do uniforme de Howard, sem parar e mordia os lábios tão forte que eu duvidava seriamente que eles não estivesse sangrando, eu não sabia quem eram eles, mas suspeitava que por estarem na mesma sala que eu, prestes a fazer o tal "tratamento" deviam ser pessoas com o mesmo "pecado" que eu.

- Vocês certamente não reconhecem nesse exato momento seus pecados, ou no mínimo o que há de errado com vocês, muitos gritam aos quatro ventos do mundo que é algo "normal" mas eu digo, não, não é! - deixou a régua sobre a mesa para cruzar os braços - Eu me pergunto, como esses... não faço a mínima ideia de como os chamar, defensores? Isso realmente não é relevante, como podem ao mínimo dizerem algo assim? Isso é uma ofensa para Deus! Mas á uma chance para vocês, sim, á meus jovens - sorriu - alguém esteve lá por vocês e os enviaram para Howard para se purificarem, iram ser normais, isso que vocês tem é reversível, diferente de muitos dos pacientes que estão nessa madhouse, agora quero que falem um pouco sobre vocês, sobre seus pecados ou o que esperam de sua estadia em Howard - pegou a régua novamente e se sentou na cadeira atrás da grande mesa - Comece você... - apontou para o rapaz que devia ter por volta de seus 20 e pouco anos.

Ele respirou fundo e se levantou, tomando coragem.

- Sou Daniel, e me sinto atraído por homens - disse num fôlego só, a freira somente negou com a cabeça e sinalizou para que ele se sentasse novamente, logo em seguida a garota se levantou assim como o indicado também.

- Me chamo Anna, tenho 22 anos e estou em Howard porque cansei dos meus pecados, quero ter uma família, poder entrar em uma igreja de cabeça erguida, quero ser normal, e sei que aqui isso será possível.

- E você poderá Anna, sei que será muito feliz assim que terminar seu tratamento - a freira idosa sorriu na sua direção me deixando ainda mais revoltada.

É claro que eu sabia que não era uma pessoa comum, eu gostava de mulheres, sabia disso desde meus 10 anos quando observava as meninas trocarem de roupa no vestiário do colégio com desejo, mas sabia que não era a única, eu acreditava que se estivesse sendo contra Deus ele não teria me criado, afinal eu tentei, tentei muito gostar de garotos romanticamente, me esforcei ao ponto de querer tirar a minha própria vida por não conseguir, me olhar no espelho era um repúdio para mim mesma, tinha passa por tudo isso, até conhecer Gil, meu melhor amigo, ele era como eu, diferente, e por isso sofria agressões e foi obrigado a se prostituir quando foi expulso de casa, ele me fez entender que isso era o que eu era, não podia mudar, eu somente podia lutar, lutar para que as coisas fossem melhores, como muitos faziam, ou viver escondida até que os dias fossem melhores. Gil foi a única pessoa sensata que conheci, me recusava a acreditar que éramos doentes, se assim fosse, qualquer pessoa que não se adequasse ao padrão rico, branco e homem também era, isso era uma maldita bolha que os ricos religiosos construíram, para que qualquer que estivesse fora vivesse reprimido.

- Sarah Andrade? - pisquei algumas vezes voltando para a realidade, percebendo que todos os olhares estavam na minha direção - Sua vez.

- Sou Sarah como já sabem - me levante sentindo meu coração bater acelerado pela adrenalina - Estou aqui por que existem uns malditos que acreditam que amar quem quiser é pecado, e também porque meus pais acharam que me mandando para esse inferno, eu sairia uma espécie de cachorro treinado, eles acham que uma dúzia de freiras hipócritas podem mudar o que sou.

- Basta! - a régua foi de encontro com a mesa gerando um estrondo na sala silenciosa.

- Podem mandar me baterem "irmã" - disse com nojo - com sorte eles me matam e vocês terão uma bela dor de cabeça - ela veio até a minha direção respirando pesado com o rosto vermelho de raiva, e sem pensar duas vezes eu cuspi em seu rosto quando ela chegou ao meu alcance.

- Maldita pecadora! - limpou seu rosto com as costas da mão e depois girou a mão, batendo com a régua tão forte em meu rosto que ele foi para o lado com o impacto, me fazendo sentir em seguida um líquido quente molhar meu queixo - Levem ela para a diretoria - disse para os enfermeiros - uma pequena conversa com a superior e ela certamente não será a mesma.

Madhouse (Sariette)Onde histórias criam vida. Descubra agora