A um click de distância (Part. 1)

Capítulo Um - Elizabeth Souza

RJ, 30 de Junho de 2020. 

  EU NÃO AGUENTO MAIS MEUS PAIS! 

  Sim, eu sei que todo adolescente já pensou ou falou isso pelo menos uma vez. Eu mesma devo ser a pessoa que mais repete isso na face da Terra. Mais depois de mais de três meses sem sair de casa por causa de um vírus idiota essas palavras ganharam ainda mais força. 

  E você acha que não pode piorar? Claro que pode. Porque obviamente meus pais não são do tipo legal que apoia seus filhos em seus sonhos e os amam do jeito que são. Claro que não. 

  Eles fazem o tipo que forçam o destino que eles julgam o certo goela à baixo da gente. E isso para eles só se daria entrando em uma faculdade de direito, engenharia ou medicina. Sendo o ideal a última, mas como eles são "bons pais" eles nos "deixam escolher" - obviamente são palavras deles, não minhas. 

  Por mais que Carlos, meu irmão mais velho, tenha seguido por esse caminho e esteja super feliz. E Luiz, meu gêmeo, aceite isso tranquilamente também, sei que isso não é para mim. 

  Como diria vovó Bete, sou um "espírito livre". Gosto de cantar, dançar, escrever poesias (e às vezes até me arriscar em musicá-las). Gosto de ler fantasias e histórias de amor. Gosto de gravar vídeos para me divertir e divertir outras pessoas. Mas obviamente para eles isso tudo nunca poderia passar de um hobby. Para falar a verdade, acredito que na verdade eles prefeririam que essa parte minha nem existisse. 

  Não consigo entender essa necessidade que nós três sejamos réplicas deles.

  Cansada de pensar nisso, abro o tiktok e fico assistindo alguns vídeos para passar o tempo. Muita gente pensa que lá só existem vídeos de dancinhas, mas falo com tranquilidade que, apesar de amá-las, a rede social é muito mais que esse nicho. Acho que por isso é minha rede social favorita. Tem tudo que eu amo reunido: música, danças, livros, debates sobre pautas sociais importantes, gente fazendo palhaçada.

  O horário que eu normalmente posto os vídeos se aproxima e eu não perco tempo, envio logo o de hoje. Não demora e eu começo a receber notificações de curtidas e comentários. 

  Dez mil seguidores.

  Às vezes me assusto com os números e na maior parte do tempo nem consigo acreditar neles, sendo honesta. É impressionante (para dizer o mínimo) que tanta gente realmente goste de me ver, ouvir minhas palhaçadas, minha voz, meus surtos…

  A menina que eu era anos atrás nunca conseguiria acreditar nisso. O mundo realmente dá voltas.

  Algumas horas depois, já cansada de ficar trancada no quarto para ignorar meus pais, finalmente saí dali. Desço as escadas e encontro Luiz jogado no sofá vendo filme.

  - Mercado! - Ouço-o gritar enquanto vou em direção à cozinha e é o suficiente para entender que é onde estão nossos pais.

  - Saíram agora? - Pergunto me colocando no corredor para poder enxergá-lo.

  - Uns 20 minutos. - Ele responde e eu vou assaltar a geladeira. Pego a caixa de achocolatado e quando ia beber ouço meu gêmeo entrando na cozinha. - Brigou com ele de novo? - Ele pergunta se encostando na parede. 

  - Não tava vendo filme? - Respondo já com raiva me virando de costas para ele.

  - Você sabe que eles não vão mudar de ideia, pra que arrumar brigas? 

  - Porque é a minha vida, Luiz. Eu acho que mereço escolher o que faço com ela. - Respondo e o ouço suspirar. - Eu sei que o Carlos seguiu isso e está super feliz. Que você aceita isso tranquilamente, mesmo tendo outros sonhos. Mas EU não consigo. Eu não posso viver com isso. Me entende? - Pergunto e segundos depois sinto ele me abraçar.

  - Espero que vocês se entendam. Amo vocês mais que a mim mesmo e não aguento mais ver essas brigas. E não sou o único. - Responde, deixando a entender que nosso irmão mais velho já sabe de tudo. Ele continua me abraçando e fazendo carinho no meu cabelo de um jeito que eu sei que vai embolar ele todo e acabar com os cachos, mas deixo que continue. 

  - Te amo também... 

  - Quer assistir o filme comigo? 

  - Qual? 

  - Um dos do Harry Potter, achei num site e resolvi fazer uma maratona, mas já eu me perdi neles. 

  - É ÓBVIO QUE QUERO, POR QUE NÃO ME AVISOU ANTES?? 

  - Porque não queria ter que ouvir você comparando com os livros de cinco em cinco segundos - ele coloca um dedo na frente da minha boca quando ameaço começar a falar - Nem tente me convencer a lê-los. 

  - Você é insuportável. 

  Nos deitamos no sofá da sala, que diga-se de passagem era a coisa mais confortável que já entrou nessa casa, e ficamos o resto da tarde assistindo os filmes. 

  Fico pensando também quanta sorte eu tenho. Minha relação com meus pais pode ser complicada, mas a com meus irmãos é o completo oposto. Nós sempre ficamos implicando um com os outros, discutimos às vezes, mas sempre estávamos lá uns pelos outros. 

  Carlos, por ser o mais velho, sempre cuidou tanto de mim quanto do Luiz. Na época que estudávamos na mesma escola, que ia desde a creche até o ensino médio, ele fazia questão de levar a gente até a porta da sala quando éramos pequenos. Sempre nos defendia quando alguém implicava com a gente, o que, por ele ter 10 anos a mais, fez com que isso quase não acontecesse até ele se formar. Luiz também sempre teve esse lado protetor. E por termos a mesma idade, sempre fazíamos tudo juntos. Nossos círculos de amigos, quando não eram o mesmo, sempre se davam muito bem, o que contribuiu para isso.

  E depois que a confusão com os meus pais começou, eles passaram a cuidar ainda mais de mim. Luiz nunca deixava eu me sentir sozinha. Sempre me chamavam pra fazer alguma coisa, em casa mesmo por causa do isolamento social, e nos dias mais difíceis até dormir no meu quarto ele ia. Já Carlos eu não via (pessoalmente) desde que a pandemia começou. Por ser médico na linha de frente ele tinha muito medo de acabar contaminando a gente, mas ainda assim, fala comigo quase todos os dias. As vezes dava pra ver que ele estava cansado, mal com a situação do país todo, mas sempre ligava. E eu não consigo expressar o quão grata eu sou por isso.

Foto: https://pin.it/4R9I0ia