Um

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Havia um cheiro gostoso pairando no ar, a cidade estava iluminada e colorida e eu vislumbrava pela janela de uma casa o filme que passava na tv enorme que eles tinham na sala; as crianças estavam sentadas no carpete comendo pipoca e bebendo chocolate quente; só de sentir aquele cheiro meu estomago se revirava; essa era a minha época preferida do ano; as pessoas sempre ficavam muito solidárias, se eu ficasse por perto e tivesse sorte, talvez essa família me oferecesse as sobras da sua ceia de natal amanhã...

Fui interrompido desse meu sonho quando um senhor carregando uma xicara nas mãos chegou á sala e direcionou seu olhar ao meu, com a testa colada na janela.

— Maldito sem teto, saia dai, já! — berrou o homem vindo em direção á janela, rapidamente eu saltei da pequena mureta e corri o mais rápido que pude para longe, até sentir meus pulmões arderem e ficar sem folego, o que eu estava pensando? Que um deles me veria ali e me convidaria para cear com eles?

Ás vezes eu odiava a minha vida e a forma como vivia; na verdade eu estava tentando existir, sobreviver á cada dia, sem ter uma razão para isso; vivo sozinho na rua desde os seis anos, quando a minha mãe morreu, e mesmo depois de tanto tempo, tendo passado sete anos, eu ainda sinto sua falta; porque mesmo que não tivéssemos um teto, eu sentia que tinha um lar, apenas por tê-la ao meu lado; mesmo que faltasse para ela, nunca deixou de lutar para que não faltasse a mim, me sentia impotente demais por não poder ter feito o mesmo por ela antes que partisse.

Meus olhos mais uma vez arregalaram e meu estomago se revirou ao contemplar os quitutes á mostra na vitrine de uma padaria; bolos, tortas, rabanadas... Eu não sabia a ultima vez que tinha experimentado algo daquele tipo; eu via crianças entrando ali junto com seus pais e por mais que eu desejasse ter tudo aquilo que meu estomago desejava, não havia nada que eu mais desejasse quê uma família.

Caminhei pela cidade vendo a noite começar a surgir e o tempo fechar; gotinhas de chuva começaram a cair sob meu rosto, e a cidade aos poucos começou a ficar vazia; me abriguei em frente a um hotel luxuoso, me sentei ali no canto da escadaria, esperando que a chuva desse trégua e  pudesse sair em busca de comida em algum lugar; era mais fácil procurar entre sacolas de lixo ou esperar sobras que jogavam aos cachorros em portas de restaurantes do quê pedir ajuda para alguém, porque as pessoas te veem como uma praga, como escoria, como se fosse uma escolha sua viver nessa situação.

Cada vez mais a cidade foi ficando vazia, até que o silêncio preenchesse o barulho dos carros e não houvesse mais ninguém andando nas calçadas, só conseguia se ouvir o som da chuva caindo sob o solo, e se ver o iluminado que irradiava das casas, com as luzes de natal enfeitando suas entradas; e naquele momento eu me senti mais solitário quê nunca, por não ter um teto, comida, e ninguém para me abraçar e dizer que tudo ficaria bem; abracei meus joelhos e me encolhi em mim mesmo, desejando com todas as forças que pudesse sumir, desejando dormir e acordar em uma realidade diferente.

Recostei ali mesmo, deitei sob o chão apoiando a cabeça com as mãos, amortecendo como se fosse um travesseiro e fiquei observando do outro lado da rua, pela janela de um apartamento uma garota bem agasalhada com um livro e uma xicara em mãos vendo a chuva cair dali... Acho que eu também faria isso; gostaria de admirar a chuva, gostaria dela se tivesse uma bebida quentinha e algo para me cobrir; mas eu só tinha a sensação do frio, o vazio no estomago, o amargo que me subia pela garganta e o medo; de que fosse assim todas as noites, de que isso nunca mudasse, medo de um futuro incerto.

 Aos poucos a chuva foi cessando, como se em um passe de magica; o cansaço já me ganhava num todo, as nuvens escuras iam se dissipando no céu, que mesmo sem estrelas ainda, insistiu que naquela noite, apenas uma brilharia; fiquei ali encarando a estrela solitária, desejando que pudesse me ver, que me ouvisse e levasse minhas preces á Deus; fechei os olhos com força para evitar que as lagrimas escorressem e quando os abri novamente, a estrela saiu do seu lugar em alta velocidade e parecia ter caído, em direção ao outro lado da cidade... Será que eu conseguiria alcança-la se corresse muito rápido? Que a encontraria caída em algum lugar? Devia ser valiosa... quem sabe eu não conseguisse troca-la por comida?

Finalmente o cansaço me venceu e gradativamente eu caí no sono sem imaginar a loucura que seria o dia seguinte.

Era uma Vez No NatalМесто, где живут истории. Откройте их для себя