1

87 15 1
                                    

São Paulo, 22 de abril de 1980

Minha linda, Sara

Lembra-se quando lhe disse que nascemos no tempo errado? Oh minha, querida, sim, nós realmente nascemos no século errado, na década errada e no país errado. Ainda assim, agradeço, de todo meu coração, por termos nos encontrado nesse mundo em ruínas e vivido um amor tão lindo, tão intenso e tão profano aos olhos dos homens.

Como você conseguiu amar a Deus, mesmo sabendo que Ele sempre esteve contra nós? Eu gostaria de ter sido tão benevolente como você foi, mas nunca fui dada à submissão, jamais amei os homens, não foi à toa que eu me apaixonei por você, minha linda mulher.

Acho que sempre te amei, Sarah. Desde a nossa adolescência, quando ainda éramos supostas devotas e frequentávamos a igreja todos os domingos, ouvindo a pregação do pastor nos dizer para amarmos o próximo assim como amamos a nós mesmos, e eu soube que te amava mais do que a mim.

É estranho pensar que, no mesmo dia em que perdi o meu pai, foi o mesmo dia em que eu te beijei. De certa forma esse dia se tornou triste e feliz, na mesma medida, e intenso como eu jamais senti. Era um domingo cinzento, chuvoso, sombrio, e, desse dia, possuo duas lembranças: soldados armados com fuzis invadindo a minha casa e levando o meu pai para morte; E dos seus lábios selados aos meus em um beijo salgado, regado às lágrimas de amor e medo.

Você foi a minha fortaleza nos meus dias mais sombrios. Foi o meu refúgio quando eu mais precisei. Você foi o meu mundo, ajudou-me a sobreviver num país em ruínas.

Oh, Sara, por que o mundo foi contra nós?

Lembro- me de quando nos deitávamos na cama, dividindo os fones do velho Walkman amarelo, mantendo os dedos entrelaçados, imersas ao som dos Beatles que rodava na sua fita cassete favorita, e ambas sonhávamos em viver uma revolução. Durante o dia éramos pecadoras, e, à noite, sob os olhos vigilantes da igreja, éramos apenas duas garotas, duas amigas e nada a mais. No púlpito, o pastor pregava a passagem do livro de Gênesis "Eva desejou o fruto proibido no Éden", e eu, profana, ali mesmo desejava você.

Você foi meu fruto preferido, Sara. O mais doce e o mais tentador. Nunca acreditei no conceito do céu ou inferno, mas quando tinha meus lábios no seus, eu me sentia no paraíso. E quando sua língua percorria o meu corpo nu, eu me sentia tão quente, como se tivesse descido ao inferno, pois realmente ardia em luxúria.

Oh, Sara! Das minhas lembranças mais tristes ainda consigo ver o seu pai, trajando aquele impecável uniforme militar cinza, ostentando no peito a patente de um general, proferindo, como um perfeito cristão, a frase que jamais me esquecerei: "Deus exige que aprendamos a ter domínio sobre a nossa carne, para negar nossos desejos pecaminosos. Somente assim seremos capazes aceitar os limites que Ele impõe ao nosso comportamento". Então ele te colocou, a força, dentro de uma ambulância, e dos olhos dele não caíram nenhuma lágrima, quando te enviou para aquela clínica, disposto a curar sua homossexualidade, como se estivesse doente. Naquele dia, o general depositou olhar frio sobre mim e disse algo que me atingiu profundamente: "Eu deveria ter te matado, assim como matei o seu pai".

Então eu soube que meu pai já não era mais uma das centenas de desaparecidos. Era apenas mais um homem soterrado em uma vala qualquer. Apenas mais um civil que a ditadura enterrou.

Um dia você me perguntou por que eu não fui te procurar? Por que eu não te salvei da tortura? Por que eu te abandonei? A resposta é simples: eu me sentia culpada por amar a filha daquele que assassinou o único homem que um dia eu amei.

Eu ainda tentei voltar à igreja, mesmo depois de tudo. Não porque acreditava em uma redenção, ou porque me arrependia de meus pecados. Não havia pecado a me arrepender, não é pecado amar e eu amei você, Sara, até o meu último suspiro. Algumas pessoas simplesmente amam outras do mesmo sexo, e não é errado, tampouco impuro, é apenas amor.

Após ter nos separado, eu voltei à igreja, porque, ironicamente, era o único lugar em que eu me sentia mais próxima de você. Porém, enquanto estava sentada no último banco, afastada dos demais fiéis, o pastor abriu a bíblia e olhando diretamente para mim, recitou: "Vocês não sabem que os perversos não herdarão o Reino de Deus? Não se deixem enganar: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus. Assim foram alguns de vocês. Mas vocês foram lavados, foram santificados, foram justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus". Naquela noite, enquanto ouvia tais duras palavras, senti o choro surgir em minha garganta e com os olhos marejados em lágrimas, deixei aquele lugar, para sempre. Não era mais capaz de me submeter a uma religião que nunca me aceitaria como eu era. Deixei de amar a Deus, mas não deixei de amar você, Sara.

Oh, minha querida, você não deveria ter vindo atrás de mim, não deveria ter me procurado, não deveria ter voltado, não deveria ter lutado por nós. Minha linda Sara, você sempre foi a razão da minha existência, jamais existiria o meu mundo sem você.

Naquele final de tarde, quando me abraçou forte e disse que fugiríamos, acreditei que seríamos felizes, que havia um futuro onde existiria um nós. Mas o mundo é selvagem, nosso país é selvagem!

E agora, Sara, escrevo essa carta me recordando da terrível sensação do suor em minhas mãos, mesclando-se com o sangue amargo jorrando do seu corpo que absorveu o impacto letal da bala que deveria ter me matado. Seu pai tirou tudo de mim, inclusive você. "Não matarás", diz a bíblia, e ironicamente um homem cristão matou a filha apenas porque não compreendia a forma como ela sentia o amor.

Oh, minha Sara. Saiba que por entre as frestas de uma janela lacrada, eu consegui ver o Sol nessa manhã cinzenta. Mas há uma tempestade vindo e o céu se tornará tão escuro quanto seus olhos castanhos que jamais deixaram meus pensamentos.

E aqui estou eu, escrevendo minhas últimas palavras, em meio aos olhos inchados e o corpo estampado marcas de cassete, sentindo na boca o gosto pungente de sangue, pensando em você, de modo a amenizar a agonias da tortura. E, enquanto espero pela minha morte, dentro do quartel general comandado por seu pai, eu só consigo pensar que, quando tudo começou, nós éramos tão jovens, tínhamos nosso próprio tempo e agora tudo está perdido. Tão logo meu corpo jazerá em uma vala, juntando-se aos milhares de esquecidos que foram mortos nessa merda de ditadura militar. Mas saiba, minha Sara, que assim como você, eu te amei até o meu último suspiro, até a última batida do meu coração.

Desejo que possamos nos encontrar no céu, ou no inferno. Seja onde for, espero me juntar a você.

Da sua, menina, e para sempre sua mulher,

Ester.

Está carta foi escrita em memórias as vítimas e a todos os amores que foram silenciados durante o triste e sombrio período da Ditadura Militar

Oops! This image does not follow our content guidelines. To continue publishing, please remove it or upload a different image.

Está carta foi escrita em memórias as vítimas e a todos os amores que foram silenciados durante o triste e sombrio período da Ditadura Militar.

Memórias - LGBTQ+Where stories live. Discover now