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A sala para a qual fora conduzido revelava uma estranha combinação de luxo e imundície. As janelas estavam fechadas e não dispunham de cortinas. No assoalho não havia tapetes, e por todos os lados viam-se malas, aparas de madeira, jornais e livros espalhados. O papel de parede exibia manchas deixadas pelos quadros e pela mobília dos ocupantes anteriores. Por outro lado, as duas únicas poltronas eram do tipo mais caro; e, no lixo que cobria as mesas, charutos, conchas de ostras e garrafas vazias de champanha se acotovelavam com latas de leite condensado e de sardinha, com louça barata, nacos de pão, xícaras com apenas um pouco de chá e guimbas de cigarro.

Pareceu que seus anfitriões estavam demorando muito, e Ransom começou a pensar em Devine. Sentia por ele aquele tipo de repulsa que sentimos por alguém que admiramos na infância por um período muito curto e que, com o tempo, logo deixamos de admirar. Em seis meses, e antes de todos os outros alunos, Devine tinha aprendido aquele tipo de humor que consiste numa paródia permanente dos chavões sentimentais ou idealistas dos mais velhos. Por algumas semanas, suas referências à Querida Escola, a Aprender as Regras, ao Fardo do Homem Branco e a Jogar Limpo tinham encantado a todos e a Ransom também. Contudo, antes de sair de Wedenshaw, Ransom já começava a considerar Devine enfadonho e, em Cambridge, tratara de evitá-lo, perguntando-se como alguém tão espalhafatoso e, por assim dizer, sem originalidade podia ter tanto sucesso. E então veio o mistério da escolha de Devine para a bolsa de pesquisa em Leicester, assim como o mistério ainda maior de sua crescente fortuna. Ele abandonara Cambridge por Londres já havia muito tempo e presumivelmente era "alguém" no mundo financeiro. Eventualmente, ouvia-se falar dele, e o informante em geral encerrava o comentário dizendo: "Camarada muito esperto, a seu modo, o Devine", ou, então, observava em tom de queixa: "É um mistério para mim como esse homem conseguiu chegar aonde chegou." Enfim, Ransom pôde concluir, com base na breve conversa no pátio, que seu ex-colega de escola tinha mudado muito pouco.

Foi interrompido pela porta que se abriu. Devine entrou sozinho, trazendo uma garrafa de uísque numa bandeja com copos e um sifão.

– Weston está vendo alguma coisa para comer – disse, enquanto punha a bandeja no chão ao lado da poltrona de Ransom e tratava de abrir a garrafa. Ransom, que àquela altura já estava com muita sede, percebeu que seu anfitrião era uma daquelas pessoas irritantes que param de fazer o que estão fazendo quando começam a falar. Com a ponta do saca-rolhas, Devine começou a arrancar o papel prateado que cobria a rolha e, então, parou para fazer uma pergunta:

– Como aconteceu de você se encontrar nesta região inculta do país?

– Estou fazendo uma excursão a pé – respondeu Ransom. – Dormi ontem em Stoke Underwood e esperava passar esta noite em Nadderby. Mas eles não quiseram me dar acomodação. Por isso estava seguindo para Sterk.

– Incrível! – exclamou Devine, com o saca-rolhas ainda parado. – Você faz isso por dinheiro ou por puro masoquismo?

– Por prazer, é claro – respondeu Ransom, com o olho fixo na garrafa ainda por abrir.

– Será que dá para explicar para um não iniciado o que pode haver de bom nisso? – perguntou Devine, lembrando-se por um instante do que estava fazendo e rasgando um pedacinho do papel prateado da garrafa.

– Não sei dizer. Para começar, gosto da caminhada em si...

– Meu Deus! Você deve ter gostado do Exército. Aquele negócio de correr de um lado para o outro, hem?

– Não, não. É exatamente o contrário do Exército. Toda a questão no Exército é que nunca se está sozinho por um instante que seja; e não se pode escolher aonde se vai, nem mesmo em que parte da estrada se pisa. Numa excursão a pé, fica-se absolutamente isolado. É possível parar onde se quer e seguir adiante quando bem se entende. Enquanto a excursão durar, não é preciso levar ninguém em consideração, nem consultar ninguém, a não ser a si mesmo.

Além do Planeta Silencioso (1938)Where stories live. Discover now