An dialann

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| SETE ANOS NO PASSADO |

Os pneus desgastados do carro de terceira linha da minha mãe frearam no asfalto molhado em frente a nossa nova casa.  Preguiçoso, observei o casebre comprado e constatei que minha mãe fez uma péssima escolha. Não que eu me importasse com o fato de que Carla sempre fora uma péssima olheira, com um abominável gosto para tudo que escolhia. Um exemplo eram as suas roupas de lã que vovó se prontificou a fazer todo final de semana e entregar uma mala repleta para mamãe na segunda-feira.  Prefeito! menos dinheiro pra gastar não acha?.  Ela dizia. 

Suspirando, abri a porta do passageiro e carreguei comigo minha mochila verde do exército que antes era do papai. Ele me fez um bem danado em me dar ela.  Pude detectar alguns pontos da nova casa do lado de fora da vidraça manchada do carro.  Tinha dois andares, suas madeiras tingidas de um azul melancólico se estendiam por extensão até que chegasse nos olhos da casa. As janelas pontiagudas me vigiavam lá de cima.  Duas lanternas douradas em um formato esquisito de bacia enfeitavam o Hall da escada até a porta.  Duas árvores quase desnudas entendiam seus galos em direção ao vão das janelas como se implorassem por algo, os poucos galhos descascados e secos apinhavam-se em uma dança macabra, talvez à procura de alguma pele para perfurar.  Estremeci. Aquele ambiente parecia não carregar um ar comum de casa já antes habitada. Algo me afastava da porta de entrada na mesma proporção que a luz fraca que se estendia pelo segundo quarto à esquerda me clamava em um assombro.  

Sacudi a cabeça e ajudei a mamãe a guardar as últimas  caixas de tralhas no porão. 

— Tome um banho meu filho, irei preparar o jantar.  — Ela ordenou. 

Os degraus da escada que me levavam até o meu novo quarto rangiam em um grito agudo doloroso aos meus ouvidos. Eu me apressei escada acima para evitar aquela maré estranha que me arrepiava até a espinha. Antes de nos mudarmos, minha mãe me disse que aquela casa era de uma mulher solteira que também havia se separado do marido e que ela tinha um filho. Mas não me disse nada sobre o tal filho, nem ninguém sabia nada dele. Os vizinhos se comportavam como fantasmas em tumbas. Não surgiam do lado de fora para conversarem ou se cumprimentarem como as pessoas normais faziam. Não havia crianças jogando bola na rua ou latidos de cachorros. Apenas um agonizante silêncio se estendia pelo bairro, sendo quebrado apenas pelos ventos uivantes da madrugada. Vez ou outra se escutava o ruído de isqueiro riscando em uma parede ou de pisadas apressadas no porão. O silêncio era tanto que até mesmo a respiração de um indivíduo era ouvida pelas paredes das casas ao lado. 

No quarto, tirei meu moletom. A chuva já tornava a cair ferozmente no telhado. Parecia com aquelas músicas anticristãs que vovó ouvia enquanto tricotava.  Eu observei as gotas da chuva baterem no vidro da janela, fortes o suficiente para causarem uma briga entre a madeira que segurava o vidro. Teria de avisar a mamãe antes que a janela despencasse chão abaixo. 

Curioso, deixei que meus olhos continuassem a seguir os movimentos fracos de uma velhinha da casa em frente a minha janela. Ela me notou e sua carranca metamorfoseou a pele maltratada pelo tempo. A velha carrancuda fechou as cortinas brancas com velocidade.  Eu teria de achar algo para me distrair ou ficaria louco com o pesar que aquela casa me transmitia por cada canto. Em principal, o quarto. Mamãe me disse que poderia pertencer ao filho da última dona.  Engoli em seco.   Presenciei atentamente quando a atmosfera verdosa do lado de fora foi preenchida pela névoa esbranquiçada da chuva que despencou com força veraz no asfalto quase que desgastado. As árvores que escavavam as raízes no gramado de casa, parecem urrar, as folhas balançando para cá e para lá pelo vento.   O silêncio continuava, mesmo com o estrondo do temporal, a quietude horripilante pairava entre os casebres.  Cortinas fechadas, carros encharcados pela chuva, um vazio. 

Neptuno 🌑Onde histórias criam vida. Descubra agora