Fevereiro de 2010 - Jogos Olímpicos de Inverno, Vancouver - Quartos de Final

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Acordei com um nervosinho miúdo, uma eletricidade que se espalha por todo o corpo e me faz ficar sem sono. Sinto a necessidade de libertar esta energia, talvez com uma pequena corrida, mas a treinadora reforçou a proibição de fazer esforços em vão, afinal, hoje é um dos dias mais importantes da minha carreira como patinadora. Não acho que fosse ter alguma lesão, mas nunca se sabe. Afinal nos últimos meses tenho treinado mais do que nunca e o meu corpo já sente algumas represálias. Procurei o telemóvel algures pela cama e quando o encontrei a luz de ecrã acendeu-se e reparei que nem cinco da manhã são. Tenho o alarme ligado para as seis e meia, tempo suficiente para tomar um pequeno almoço leve e iniciar o meu treino antes do início das provas, portanto, tenho precisamente uma hora e meia até o alarme tocar. As competições começam às nove horas e a partir daí só posso esperar que chegue a minha vez. Sou a atleta número 25, o que por um lado é bom, porque tenho mais tempo para me preparar, mas por outro é mau porque a ansiedade aumenta a cada performance. De forma a tentar esquecer a importância e o nervosismo deste dia, levanto-me e dirijo-me à pequena secretária que se encontra no canto do quarto e que serve também como suporte para a televisão, pego no livro que trouxe comigo para esta viagem "A rainha no palácio das correntes de ar" e retomo a página que fiquei ontem. Os minutos vão passando e quando dou por mim já estou quase no final, sinto que está para chegar alguma reviravolta. Mais uma página, e outra quando de repente...

< bip bip bip , bip bip bip, bip bip bip >

O alarme decide tocar, ainda por cima agora que estava na parte mais interessante. Acho que é sempre assim, quando nos envolvemos no enredo é quando a realidade nos cai, neste caso, sob a forma de alarme.

Silencio-o e esperneio-me na cama em sinal de protesto. Para quem? Essa é uma boa questão! Estou sozinha neste pequeníssimo quarto de hotel, em Vancouver no Canadá e a minha treinadora deve estar algures num quarto deste piso, mas nem me dei ao trabalho de saber qual era o número da porta. Vim com mais três raparigas, duas delas são as minhas melhores amigas, talvez as únicas amigas que tenho. O meu pai e a minha avó estão em Portugal e a minha mãe, morreu quando eu nasci. Não tenho mais nenhum familiar pelo que vim apenas com a minha equipa, enquanto que as outras raparigas trouxeram os pais ou familiares próximos. Isso significa que não existe ninguém a apoiar-me. Quando digo apoiar-me é especificamente a mim e não a Portugal, porque nisso sei que temos uma plateia extensa.

Após digavar alguns minutos sobre a vida, começo então finalmente o dia com um banho refrescante, para não dizer gelado e visto o fato de treino da seleção. Como a minha prova é ao início da tarde, não há necessidade de vestir já o fato da prova, até porque a probabilidade de o sujar durante este período de tempo é muito grande, não fosse eu uma desastrada de primeira quando tenho os pés assentes na terra.

A manhã passou a voar, literalmente, entre combinações de saltos e piruetas perfeitamente treinados durante anos e anos por todos os patinadores que se encontram no recinto. Sinto-me cada vez mais nervosa porque não tem havido falhas graves, o que significa que a pressão é cada vez maior. Comparando a coreografia que tenho com as que vi, noto que a minha é ligeiramente mais complexa, no entanto, a chance de um deslize é maior. Será que devo alterar algum dos movimentos para algo mais complexo de forma a impressionar o júri e conseguir mais pontos? A treinadora está a analisar todos os movimentos e a criar na sua cabeça a minha rotina vezes e vezes para perceber quais as chances de passar à final. Não abriu a boca mas consigo ver nos seus olhos e na sua postura que é isso que está a fazer. Tem os braços cruzados, os ombros tensos e parece nem piscar os olhos, algo um tanto contraditório visto o ato de piscar os olhos ser benéfico para a renovação da atenção e, o mais importante, a lubrificação e limpeza da córnea. Se o meu pai estivesse aqui diria que estou a disparatar outra vez fatos aleatórios e que ninguém tem interesse, mas é a realidade, é pura ciência. Questiono muitas vezes de onde vem o meu gosto por ciências, talvez seja por parte da minha mãe, mas o meu pai não se recorda de alguma vez terem falado dos seus gostos por este ramo.

Após o almoço eu e a treinadora decidimos rapidamente rever a minha coreografia.

< Vitória Santos, Portugal >

É agora! Treinei toda a minha vida para momentos como este. "Concentra-te e faz o teu melhor. Quer ganhas ou percas tens uma tortilha à espera em tua casa", era o que meu pai diria se estivesse aqui. O meu pai faz sempre tortilha em dias importantes, é a nossa confort food e é em memória da minha mãe, Elena Suarez, nascida em Barcelona em 1974. É estranho pensar em alguém que nunca conhecemos num momento destes, mas é nela que penso. Mãe, quero deixar-te orgulhosa. Esta prova é dedicada a ti, repito para mim mesma. E com isto entro no campo e inicio a minha coreografia.

Quando passo a barreira sinto que desliguei o botão do exterior, que existe uma linha invisível ao redor e que tudo o que está para lá está em mute. Vejo corpos, mas é impossível reconhecer seja quem for. Começo a dançar em modo piloto visto ter passado as últimas semanas, mais de oito horas por dia a treinar esta coreografia. Talvez sejam as hormonas ou o nervosismo, mas estou a chorar enquanto patino ao som de "Claire de Lune", a música que segundo o meu pai, a minha mãe ouviu durante as duas semanas que esteve comigo no hospital. Espero não me prejudicar por ter escolhido uma música que provocou com que chorasse durante a apresentação, mas na verdade ainda não cometi nenhum erro em nenhum dos movimentos. Termino a coreografia com uma sequência de Biellmann spins que provoca na plateia um turbilhão de palmas e gritos. Ainda em lágrimas agradeço ao público e saio para junto da treinadora que de imediato me abraça.

Analiso a minha pontuação no ecrã e fico em choque quando reparo que estou em primeiro, eu uma jovem de 17 anos, que viveu toda a sua vida numa terrinha nos arredores do Porto chamada Argoncilhe. Sempre me disseram-me que era muito tarde, que nunca ia conseguir chegar onde sonhava e aqui estou eu, na semi final dos Jogos Olímpicos de Patinagem Artística, em Vancouver. Continuo a chorar, mas desta vez de felicidade enquanto alguns membros da equipa me abraçam. Sinto o olhar de Cátia preso em mim, mas não quero saber, neste momento só quero festejar!

VitóriaWhere stories live. Discover now