O artista de trocados

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Por caminhos de terra seguia velozmente o carro que traçava da cidade de K*** para a cidade de L***. O trajeto repleto de árvores que corriam junto a cena de exuberantes outras plantas que pareciam também correr. A vista longa de grandes regiões pastorais era refletida pelos imensos montes que se cobriam uns aos outros em variados tons verdes. O herói dessa nossa história observava tudo isso tomado por tamanha alegria, tamanha sensação de bem-estar em seu espírito, que poderia se tocar músicas galantes e gloriosas em seu trajeto. Cada árvore era uma representação da imponência do tempo e de força , cada gramínea um espaço ébrio onde se encontrava uma infinidade de bichinhos de todas as formas , cada flor era uma beldade dum solo numa ópera pomposa , junto a um caminho no qual todas as criaturas faziam parte duma tocata natural de harmonia inconfundível , sem páreo , original , doce e aligeirada suavemente em pequenos floreios ora galantes e ora num encanto tão contente que de relance poder-se-ia sentir a brisa análoga ao alento do próprio Todo-Poderoso em nossos corpos.

Era tarde de 1921 quando nosso herói partiu com esperanças de uma nova vida. Sim, um artista... E como artista, precisava ir onde os aplausos pudessem ser alcançados...Todo artista deve ir ao povo... E numa amabilidade de violinos em arpejos , flautins narrando a cantiga doce das inspirações , numa reverberação de variados instrumentos – cada qual com sua sensibilidade – que nosso amigo chegou a cidade de L*** convicto , na firmeza em que se range os membros e tudo quanto é obstáculo cai por terra diante do ímpeto. A juventude representa de ao menos realizar seus sonhos... Sim... Eis aí uma das coisas mais poderosas entre os homens: A coragem de juventude. Aos vinte e um anos o heróis dessa nossa história tira as vestes protetoras da família, o manto sanguíneo dos laços, limpa da alma o ranço do leite materno e tudo aquilo apenas iria reinar na memória daqueles que sempre estiveram por ele ... Por fim: A sedução de buscar a própria vida, pois nos chega um momento que , inevitavelmente, temos de por nossas calças , calçar nossos sapatos e tomar do aprendizado pelo forma mais amarga que é a experiência , sem copiar os sábios, sem a meditação que se torna inútil por não ser praticável , apenas pela ânsia de coração contrito que tem pressa , apenas para sentar-se a mesa , frente a vida , e ser servido pelos grilhões e engolir o fato de que serão muitas as vezes em que temos de passar tragédias inteiras falando em silêncio e , muitas mais vezes ainda , reduzir nossos passos e saber quando se jogar as cartas... Que se tenha ação! Mas que também não tenhamos muita pressa; que encaremos o mundo, mas ao menos sabermos o momento em que podemos encolher ou afiar as unhas ... Mas principalmente: Aprender que nada pode nos coagir ou destruir nosso ser , aprender a ser fiel a si mesmo , aprender que a liberdade é nossa essência e que temos de ter proveito responsável diante dela , pois liberdade só se pode ser um ideal para a vida quando sabemos o que queremos da vida. Não devemos parar, não podemos ... Parar por completo aleija a alma, mas temos que observar, algumas vezes, que a vida precisa de pequenas pausas. E foi com esse sentimento que nosso herói partiu de K*** para L***, foi assim que ele aprendeu um pouco ... Um pouco amargo demais chamado de vida.

A primeira noite encontrou uma pensão servida de boa janta e de bom vinho. Deitou-se em bom leito e em bom sono...

Na manhã seguinte procurou por algum nobre ou qualquer um que quisesse encomendar alguma obra... Falhou... E assim seguiram dias ... Nas outras manhãs, dia mais dia, suas expectativas diminuíam assim como seu montante... Nas outras manhãs procurou por qualquer um que lhe desse qualquer serviço... E como é triste quando vislumbramos o tecido do mundo opaco e percebemos que , ao matar nossos sonhos , matamos a nós mesmos!

O tempo passava , aqui e ali encontrava alguma coisa que lhe dava algum sustento , chegando ao ponto de qualquer coisa lhe bastar para sobreviver , conseguindo qualquer trabalho que fosse para ter ao menos o que comer , com a angústia latente das semanas passando vagarosamente , das agonias e frustrações fatais que logo eram colocadas máscaras para com as cartas mentirosas e de vergonha escondida , mentindo à si para com sonhos possivelmente realizáveis , com cartas lacradas em suspiros fundos e olhares distantes seguindo a mesa cena por meses a fio.

Canções e danças da morteOnde as histórias ganham vida. Descobre agora