Meteoro

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Fechou o livro com raiva. Largou-o no chão; era "O Livro dos Reinos - o último testamento; quando os deuses conversam". Capa marron, couro de jacaré. "Nada há acima da Palavra", repetia a si mesmo. Palavras que acabara de ler no livro sagrado. Enquanto meditava a razão de sua existência, ouviu-se um ruído na rua; vozes altas, gargalhadas agudas. Um dos moleques, Joaquim, filmava um homem caído no chão. Filmava e ria. Outros três, pela cocaína e camaradagem, riam juntos. Uma mulher, Maria, abriu a janela.
- O que é que há aí, camaradas? - gritou escondida atrás das plantas.
- Sei quem é não, dona Maria. Mas tá feio na foto! - disse com cara de zombaria e deboche - Tá mais pra lá do que pra cá, viu!
Outras  janelas foram surgindo. Se abriam e tinham vozes. Sim, as janelas falavam. Falavam e saia dali a luz.
- Joaquim, meu filho - disse uma voz de trovão - quem é esse caído no chão?
-Pedro, meu pai, sei quem é não. É estranho e tá corrido - respondeu, fazendo-se de bom moço, dissimulado, após ouvir a voz de seu criador.
Adão levantou-se do colchonete. Resolveu descer e antes pegou o livro do chão. Foi com a Palavra nas mãos, coração perturbado, barriga vazia; faminto de paz e de justiça. Aproximou-se do quase morto, confrontou os rostos que ali estavam, ergueu a pele de jacaré como se fosse de dragão e disse: "Nada há acima da Palavra! A Palavra é uma Instituição Universal. Não está escrito bene facitis? Que façamos o bem então!".
Ergueram o homem até o apartamento de Adão. Esquentaram a água, prepararam um banho. Passaram pano úmido na água morna em todo o corpo sagrado. Deram água, comida e cobertores. Maria trouxe a janta. Pedro trouxe as ervas. Deus trouxe o tempo e a cura. Ninguém sabe de onde aquele homem maltrapilho, cara ensanguentada, descabelado, bêbado, sujo e magro surgiu. Mesmo depois de décadas juntos ninguém jamais perguntou. Não era necessário. Alí, em um conjunto habitacional ocupado por um bando de vagabundos, uma pequena multidão se aproximou do espancado. Uma mulher, onze homens e um messias. Se ouvirem dizer por aí que ele surgiu dos céus como um meteoro, creia.

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