Prólogo

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Ser pobre parece pecado. Parece que só os que vivem bem, com mesas fartas de comida, em casas grandes e bonitas, os que usam roupas limpas, os que têm boa-vida, captam a atenção de Deus.

Enquanto, nós que somos olhados e tratados como lixo, como se fôssemos criminosos, como se a nossa vida não fosse digna de ser mantida, como se tivéssemos nascido para vivermos em precariedade, como se o nosso destino fosse apenas esse, nenhum outro diferente desse. Vivemos ignorados, pelo Rei, pela Rainha, por toda a nobreza, por todos os privilegiados.

Lembro-me que quando eu tinha 11 anos, um ano depois da morte do meu pai, um dos momentos mais humilhantes da minha vida aconteceu num dia frio, nós tínhamos acabado de chegar em Maré de Braz, na cidade grande, toda linda, estava iluminada com as luzes natalícias, Pedro e David ainda eram muito mais novos, Zénny tinha 6 anos e tremia de frio, o seu casaco cor-de-rosa não era dos mais resistentes ao vento que fazia. Estávamos com fome, após termos feito uma viagem de 8 horas, fomos junto de um mercador que passava vez ou outra pela nossa antiga cidade, por seu jeito gentil, aceitou fazer o trajecto de São Nicolau até Maré de Braz, connosco.

A cidade está cheia de casas que pareciam aconchegantes, com as suas decorações de Natal, tinha lojas por todo o canto, as pessoas pareciam felizes e amigáveis entre si, entrando nas diversas lojas e saindo com presentes e sacos de compras.

Fome. Tínhamos muita fome. Um dos motivos pelos quais Zénny estava nas minhas costas enfraquecida e anémica, David e Pedro choravam no colo da minha mãe, avistei logo uma padaria, pensei que seria boa ideia pedir comida, a minha mãe não gostava de "mendigar" nada como ela dizia, mas o desespero nos seus olhos era visível demais. Nós não aguentaríamos a fome por mais tempo, ela e eu já estávamos fracos demais, ela amamentava a Pedro e David, mas ela própria precisava alimentar-se.

A minha mãe sentou-se nos degraus da escada de um prédio ali perto com os meus irmãos, tirei Zénny das minhas costas. Depois de observar a minha mãe decidi procurar algum lugar em que eu pudesse pedir a ajuda de alguém ou pedir algum alimento. A minha mãe olhava-me com tristeza e perdão no olhar, ela sempre se desculpava, porque dizia que não conseguia dar o melhor à (nós), ou que não conseguia assumir a sua responsabilidade e dever de mãe, ouvi-la entristecia-me imenso, porque eu sabia de todo o seu esforço e eu nunca quis dar-lhe trabalho, sempre quis ajudá-la, naquilo que eu conseguisse auxiliar.

Dirigi-me em direcção a uma padaria que tinha bolos na vitrine, pães e doces que pareciam tão deliciosos, só de abrir a porta senti logo o cheiro delicioso dos bolos ali feitos, as pessoas ali presentes olhavam-me com surpresa e outras com nojo, a minha roupa estava suja e as minhas calças meio rasgadas, e eu tinha essa noção, o que me fez ter um sentimento de inferioridade na presença de todas aquelas pessoas muito bem vestidas e limpas. Dirigi-me pelo corredor branco, passando pelas mesas, onde se encontravam pessoas, clientes comendo ou conversando, agora havia um silêncio porque me olhavam com atenção acompanhando os meus passos, a padaria tinha parede bege e alguns quadros na parede, fotos de famílias ou de amigos que já tinha ido naquela padaria.

Tinha um ar aconchegante, mas eu já me sentia inseguro com o olhar daquelas pessoas, como se eu não devesse estar ali. Mas eu precisava pedir comida, ou eu, meus irmãos, minha mãe e irmã adoeceríamos de fome. Já era comum não termos o que comer, infelizmente, a única alternativa era essa, a minha mãe não gostava de pedir comida para as pessoas porque achava que isso as chateava e as fazia desprezar-nos ainda mais. E ela não estava errada.

— Errr... Me descul... com licença, desculpe-me...-pedi licença enquanto tentava chamar a atenção do Senhor que se encontrava no balcão atendendo os clientes que ali pediam...

O Senhor olhou para mim, com surpresa e em seguida com irritação. Acanhei-me, mas forcei-me a falar, mesmo com medo...

Deus me ajude por favor!

— Senhor, por favor, ajude-me, eu e a minha família, não temos o que comer. Viemos de São Nicolau e ainda não temos onde dormir também, mas só lhe peço alguns pedaços de pão...-Pedi com expectativa de que pudesse ser ajudado, enquanto todas aquelas pessoas me olhavam com desprezo, como se o que eu estivesse a pedir fosse algum tipo de crime.

— MAS O QUE SIGNIFICA ISTO? AQUI NÃO ENTRAM MORTOS DE FOME! NÃO TENHO NADA A VER COM ESTA SITUAÇÃO, SAIA DA MINHA PADARIA AGORA MESMO! SEU MENINO IMUNDO! — Gritou comigo e as suas palavras deixaram-me envergonhado, senti-me humilhado e sujo, e as minhas lágrimas imediatamente caíram, saí dali a correr, sob o olhar de todas aquelas pessoas que me olhavam como se eu fosse um extraterrestre.

Eu já estava há algumas distâncias da padaria, quando ouvi alguém saindo...

— Ei, espere... Menino! — chamou-me alguém, virei em direcção à voz. Era um menino que parecia ter a minha idade, tinha a pele morena e cabelo preto brilhante e liso até aos ombros, parecia ser de origem indiana.

-Oi.... Tome! — Aproximou-se e deu-me um saco, sorriu e tocou-me nos ombros, parecia querer dizer mais alguma coisa, mas foi chamado e então lançou-me um olhar amigável e foi-se.

Andei com o saco na mão até onde estava a minha mãe com os meus irmãos, abri o saco e tinha alguns pães e salgados, senti algo se derreter no meu coração, e uma lágrima caiu.

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