pavio do destino

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Em meio a toda a intimidade que era quase ostentada pelos dois amantes ㅡ agora verdadeiros amantes ㅡ naquele pequeno apartamento localizado entre as mais boêmias ruas de Copacabana, o relógio de parede que enfeitava a escura sala insistia em manter os seus ponteiros girando.

Com o frio já passando pelo fino tecido do lençol e alcançando o seu corpo, Giovanna encarava o músico à sua frente sem fazer muita cerimônia.

Afinal, há apenas alguns minutos estavam nus um sobre o outro.

Ela sorriu com as lembranças da madrugada, passou a mão pelos cabelos bagunçados, arrumando alguns fios, e observou o ambiente ao redor, cheio de livros e discos. Agora, o cheiro que ela sentia naquele cômodo, e mesmo no quarto, quando ainda estava deitada, não era mais somente de Nero.

Era o cheiro deles.

Enquanto isso, ainda mais próximo da pequena varanda, o compositor não ousava desviar os olhos de Giovanna. Vê-la ali, parada no meio da sua sala e com o corpo coberto apenas por um lençol, despertou nele uma estranha sensação de admiração, quiçá comoção.

Antes de tudo, pela beleza dela.

As longas mechas do cabelo de Giovanna desciam pelos largos ombros e desenhavam a silhueta do seu corpo, finalizando a sua ondulação já próximas ao quadril ㅡ que também era muito merecedor da atenção do olhar de Nero.

O rosto dela estava ruborizado, mesmo que o bronze escondesse um pouco essa característica, e era acompanhado em tonalidade pelos lábios avermelhados e ainda levemente inchados.

Automaticamente, Nero trouxe à mente todos os beijos que haviam compartilhado naquela noite, dos mais inocentes aos mais desavergonhados.

Em passos lentos, ele caminhou até o centro da sala e molhou os lábios com a própria língua, já crente do calor que se apressava em se apossar do seu corpo sempre que estava perto de Giovanna.

Ele a olhou nos olhos, tomou-a pela mão e se aproximou de vez.

Agora, estavam perto o suficiente para que as suas respirações se confundissem na curta distância que ainda os separava.

Em um sussurro tímido, Nero perguntou:

ㅡ Você conhece Nelson Rodrigues? ㅡ A sua voz estava menos rouca do que Giovanna imaginava que estaria, talvez por ele estar cantando minutos antes.

À procura dos olhos de Nero, que encaravam as mãos entrelaçadas deles, a empresária assentiu com a cabeça, permanecendo em silêncio.

Além da voz do músico e dos ponteiros do relógio, era possível ouvir apenas as ondas do agitado mar carioca.

ㅡ Ele costumava colocar palavras na boca das outras pessoas. Espalhava que elas haviam falado tal e qual coisa, sem nunca as terem dito de fato. ㅡ Nero falava em um tom de voz baixo, narrando como se contasse uma história. ㅡ De um dos seus melhores amigos, inclusive, o Otto Lara Resende.

Ao perceber que se prolongava em seu comentário e que Giovanna estava tentando entender o ponto em que ele objetivava chegar, Nero parou de falar e suspirou, soltando um riso envergonhado, antes de continuar:

ㅡ Ele escreveu uma vez sobre um verso de Pablo Neruda, que eu não sei se é realmente dele, porque o Nelson imaginava falas para as pessoas e porque eu nunca li muito o Neruda.

Finalmente, o compositor olhou Giovanna nos olhos e continuou, esforçando-se para se lembrar das palavras do escritor brasileiro:

ㅡ "É de Neruda, do Neruda da primeira fase, este verso: 'Tão curto o amor e tão longo o esquecimento'. Ai de nós, ai de nós! Não fazemos outra coisa senão esquecer."

magia pura | gnWhere stories live. Discover now