CAPÍTULO 1 - IMPREVISTO

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Era um fim de tarde de domingo relativamente comum. Finais de semana eram  infernais, mas os domingos costumavam ser ainda mais sufocantes. Como se soubessem disso, passavam se arrastando, justamente para me torturar a cada nova semana que se iniciava. Depois de comprar e pagar pelos poucos materiais de higiene pessoal e alguma comida, voltei para o meu carro, uma picape.

Alguns anos antes eu estaria usando um carro de passeio, mas fazia um bom tempo que eu não me preocupava mais em ter espaço. Minha mente estava agitada, e meu corpo, em alerta. Meus pés não paravam no lugar graças aos movimentos repetitivos e eu queria que as horas voassem. Estava ansioso, esperei muito tempo para a madrugada que estava por vir, e prometi a mim mesmo que iria me lembrar do inferno que vivi quando colocasse minhas mãos naquela garota.

O baque surdo da porta do veículo se fechando foi seguido por uma sensação que eu conhecia bem. Não sentia nenhuma vontade de voltar para casa, mesmo que fosse só para me preparar para essa madrugada. Encarei o para-brisa, ao longe era possível ver os últimos raios de sol iluminando as nuvens e sumindo vagarosamente no horizonte, colorindo o céu com tons alaranjados e se mesclando com nuvens rosadas.
Fiquei ali, assistindo o sol se pôr e pensando no que eu iria fazer algumas horas mais tarde.

Pensei em Lisa, saber que ela não estaria orgulhosa do que eu estava prestes a fazer só doía ainda mais. Mas não havia nada que eu pudesse fazer e eu disse isso em pensamento enquanto encarava o céu, como se ela pudesse me escutar. Eu precisava acabar com isso, tinha a sensação de que a história ainda não tinha terminado, de que só conseguiria ter paz quando visse Ivan morto, quando o matasse com minhas próprias mãos.

Deitei a cabeça no encosto do banco e permaneci assim até escurecer, canalizando minha raiva. Quando as primeiras estrelas começaram a brilhar forte no céu eu respirei fundo e girei a chave na ignição, não tinha mais como adiar o sofrimento de voltar para o vazio daquela casa.  Das poucas coisas que eu ainda gostava de fazer, dirigir era uma das que estavam entre elas, por ser domingo o trânsito estava limpo, me permitindo aumentar um pouco a velocidade, não mais do que o limite estabelecido me permitia.

Como o restante dos motoristas, eu parei no sinal quando a luz mudou para amarelo, não demorou para que o sinal fechasse e um amontoado de pessoas cruzassem a avenida. Faltava pouco para o sinal mudar para verde quando uma mão feminina acenou para os carros pedindo calma. Uma mulher atravessou com a filha e o marido, ambos vestiam roupas casuais de passeio e carregavam cestas de piquenique. A garotinha de aproximadamente 6 anos, de cabelos escuros e bochechas gordas atravessou correndo, se não fosse a mão do pai a segurá-la seria a primeira a chegar do outro lado.

Meu peito ardeu, o bolo que eu já conhecia bem se formou em minha garganta em questão de segundos. Meu coração pareceu bombear fogo nas minhas veias. Eu precisava encontrá-lo, encontrar alguém que ele amasse, qualquer um. A menos que fosse uma criança eu não hesitaria, faria exatamente o que jurei fazer.

Acompanhei o grupo com os olhos mesmo depois de estarem já do outro lado, de repente desejando que eles não sumirem do meu campo de visão. Há poucos anos atrás aquele era eu, era como se me viesse com minha mulher e minha filha atravessando a rua, rindo normalmente, vivendo normalmente, sendo feliz... Essa versão de mim morreu junto com elas. Não tive tempo de lamentar, o som de diversas buzinas soaram atrás de mim, eu acelerei, deixando meus devaneios para trás e indo embora finalmente.

Morar no bairro Lagoa, Rio de Janeiro, tinha vantagens e desvantagens. Eu tinha uma vista privilegiada da Lagoa Rodrigo de Freitas em vários cômodos e uma parede de vidro temperado na sala de estar. A casa era grande e confortável e o bairro em si era tranquilo, a desvantagem era que eu vivia sozinho.

Quase sozinho.

Holly veio me cumprimentar quando abri a porta, a cadela da raça akita inu era o único ser vivo que me fazia companhia depois que elas se foram, alisei seu pêlo castanho-avermelhado e segui para a cozinha a fim de deixar as sacolas de compras na bancada. Eu só as guardaria no dia seguinte, um sorriso doloroso ameaçou se formar em meu rosto, pensando no quanto certos incômodos passam a se tornar desejados quando não se tem mais nada.

(Degustação) Doce Redenção - Livro 1 da Série "Doce Amor" Onde as histórias ganham vida. Descobre agora