capítulo 6

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  Ebenizer Wangard dormia em sua cela após finalmente vencer a insônia que o havia levado a uma exaustiva reflexão acerca de sua situação em uma madrugada chuvosa que parecia nunca chegar ao fim. Cinco meses na prisão, sob a incerteza do que poderia vir pela frente, só fazia aumentar o desânimo que distanciava Ebenizer cada vez mais dos ideais que o levaram até ali. Desde o dia em que o escravo Sabá foi levado à forca, Ebenizer Wangard permaneceu sem companheiro de cela, tendo apenas a visita de um oficial que três vezes ao dia levava suas refeições e de dois guardas que o levavam para o banho no início da tarde.
  Três e meia da madrugada, o incessante som da chuva era a única coisa que quebrava o silêncio naquele lugar, até Ebenizer ser despertado por uma voz que não podia distinguir, uma voz que sussurrava seu nome insistentemente até ele se levantar. Ebenizer abriu os olhos e levantou-se assustado, olhou em volta e não viu ninguém. Um detalhe chamou sua atenção, a cela estava aberta, e não havia nenhum guarda vigiando, e o mais intrigante era o fato de que apenas a cela de Ebenizer estava aberta, as demais celas estavam fechadas e totalmente vazias. Ebenizer descartava todas as chances de uma fuga, e antes de sair hesitante da cela, considerou a possibilidade de estar diante de uma cilada.
  — Olá! Tem alguém aí? — perguntou o rapaz, seguindo cauteloso pelo corredor. Depois de alguns passos, o corredor de acesso às celas tornou-se irreconhecível aos olhos de Ebenizer, pois parecia mais longo do que quando ele chegou à prisão. Alguns minutos de caminhada, e um nevoeiro surge à sua frente com uma luz embaçada no meio, uma luz média alternando nas cores azul e branco. Era tudo muito estranho, Ebenizer temeu e cogitou voltar para a sua cela, mas ao olhar para trás não viu nada além de uma escuridão densa que só fez aumentar o seu medo.
  — Mas o que é isso? — perguntou Ebenizer, ao se ver envolvido pelo nevoeiro. Então, ouviu-se o ranger de uma porta se abrindo, e o som de passos lentos indo em direção ao rapaz que transpirava apreensivo diante daquela incógnita.
  — Olá, senhor advogado — colocando a mão no ombro de Ebenizer, falou o estranho, surpreendendo-o, fazendo com que se afastasse assustado.
  — Quem é você?
  — Olá, doutor Ebenizer. Há muito tempo não chovia tanto assim nessa região, não sei se isso indica prosperidade ou se é sinal de tragédia
— falou o homem, estendendo a mão para cumprimentar Ebenizer. Um homem branco, de estatura mediana, cabelos e olhos pretos, barba cuidadosamente aparada, usando trajes finos e sapatos impecáveis, surge diante de Ebenizer.
  — Ainda não respondeu a minha pergunta. Quem é você? — insistiu Ebenizer.
  — Venha comigo, quero te mostrar algo — disse o homem, virando-se. O nevoeiro se desfez, e Ebenizer percebeu que já estava em outro lugar, um enorme salão com vários cômodos fechados.
  — O que está acontecendo aqui?
  — Senhor Ebenizer, escolha uma porta — disse o homem, sentando em uma cadeira.
  — Você é um ilusionista? Basta! Saiba que não estou vendo graça nisso.
— Ninguém está de brincadeira aqui, senhor Ebenizer. Agora, escolha uma porta.
  — Quem é você, quem foi que te enviou?
  — Sou exatamente quem você está vendo. Agora, por favor, escolha uma porta e abra.
  — Você é enigmático, vamos ver no que isso vai dar — falou Ebenizer, indo em direção a uma das portas. Ebenizer abriu a porta e deparou-se com um escravo preso com um viramundo, viramundo era um dispositivo de tortura que mantinha os escravos sentados com a mão esquerda ligada ao pé direito e a mão direita ligada ao pé esquerdo, causando assim grande desconforto e dor. Ofegante, o escravo parecia ter dificuldade para respirar, em suas costas havia marcas recentes de açoites esfregadas com sal e limão.
  — Este é o Benjamin, conhecido como o pequeno miserável. Sabe qual foi o seu erro? É o mesmo que a maioria dos escravos comete, ele tentou fugir. O Benjamin era um rapaz bonito e saudável, que arrebatou os corações das moças na fazenda, não só das escravas, mas também das mulheres livres que serviam na fazenda onde ele morava. O seu senhor nunca se importou com os elogios que o escravo recebia das mulheres, contanto que o seu trabalho rendesse. Benjamin era um excelente cocheiro e tinha um jeito especial de lidar com os cavalos, ele tinha um dom, parecia que eles o compreendiam e o amavam. Benjamin podia contar com alguns privilégios dados por seu senhor, que além de recompensá-lo com boas roupas e um casebre longe da senzala, permitiu seu namoro com a escrava Euzébia, uma mulata que servia na casa grande. Poder viver ao lado de Euzébia era o sonho de qualquer um naquela fazenda, mas para Benjamin tornou-se um pesadelo, e tudo por causa da sinhá Olívia, a irmã caçula do patrão. Olívia mantinha uma postura esnobe, e o seu desprezo para com os escravos era tanto que ela não falava com eles nem para dar ordens; Olívia tinha uma serva branca, através da qual se comunicava com os negros da casa. Olívia tinha uma opinião contrária a da maioria dos jovens da sua convivência, visto que seus amigos eram quase todos contra a escravidão; mas ela carregava um segredo que jamais alguém poderia imaginar, um segredo capaz de arruinar a reputação de qualquer dama da elite, Olívia sentia uma atração pelo escravo Benjamin, um desejo sórdido que gerou um ciúme doentio, uma obsessão capaz de levá-la às últimas consequências. Quando soube que seu irmão havia consentido o relacionamento de Benjamin e Euzébia, Olívia irritou-se de tal maneira, que a todos se tornou notório o seu mau humor, embora ninguém pudesse imaginar o motivo. O que Olívia sentia por Benjamin não era amor, era apenas um desejo sujo alimentado por sua personalidade possessiva e egocêntrica. Olívia iniciou uma perseguição contra Euzébia, colocando-a constantemente em situações difíceis para poder argumentar contra ela, e em algumas ocasiões chegou até mesmo sugerir que a escrava fosse vendida. Benjamin não suportou ver sua amada sendo maltratada daquele jeito, e também não gostou da ideia de ver diminuída a frequência de seus encontros com Euzébia por causa dos caprichos da sinhazinha, então o rapaz decidiu fugir com a moça e recomeçar sua vida bem longe da fazenda, mas foram descobertos, e a ira de seu senhor caiu sobre eles. Euzébia foi vendida e nunca mais se teve notícias dela naquele lugar, para Benjamin restou a amargura de ficar sem sua amada, e ainda sofrer um severo castigo. Sei o quanto isso é revoltante aos olhos de um idealista, mas acho que o Benjamin podia ter sido mais inteligente, talvez não chegaria a esse ponto se tivesse suportado um pouco mais a perseguição da sinhazinha Olívia.
  — Por que está me contando essas coisas?
  — Para que possa ter certeza das decisões que está tomando — respondeu o homem, levantando-se da cadeira.
  — E como você sabe que tenho tomado decisões?
  — Vá por mim, é uma causa perdida.
  — Por que está dizendo isso?
  — Olha, também não concordo com a crueldade dispensada aos escravos, nem acho que o valor de uma pessoa se define pela cor da pele, mas estou convencido de que realmente não vale a pena ficar brigando por causa disso.
  — Você me intriga.
  — Estão sendo elaboradas leis que visam acabar com os maus-tratos, e não vai demorar muito para vigorar, logo logo a escravidão no Brasil chegará ao fim, os escravos terão uma vida mais digna, só precisarão suportar mais um pouco.
  — E desde quando há dignidade na escravidão? — questionou Ebenizer.
  — Não há dignidade na escravidão, só estou dizendo que uns nasceram para governar e outros nasceram para servir.
  — Você só pode ser um aristocrata louco — falou Ebenizer.
  — Você está na prisão por causa dos negros que não conseguiu libertar, não pense que você é um herói, pois eles sabem que você é apenas um homem branco tentando ser o protagonista na história deles. É tudo uma grande perda de tempo, e eles o amaldiçoam a cada castigo que a tua frustração lhes custou. — O homem fez um movimento com a cabeça em sinal de despedida, e virou-se para ir embora.
  — Espere. Para onde você vai?
  — Há muita coisa em jogo, muito mais do que você pode imaginar — disse o homem. Ebenizer observava o homem se distanciando, enquanto a escuridão começava a tomar todo o ambiente, e o barulho da chuva ia aumentando. O desespero tomou conta do rapaz, que perdido no escuro, não sabia o que fazer, até que despertou subitamente dentro de sua cela.
  — Hã? Foi apenas um sonho, mas parecia real — falou o rapaz encharcado de suor.
  — Ei, o que está havendo aí? — perguntou o guarda, aproximando-se da cela.
  — Nada, não está acontecendo nada, está tudo bem por aqui, eu tive um sonho estranho e acordei pensativo, foi só isso.
  — Então cale a boca e volte a dormir, ainda são quatro horas da manhã, você terá o dia todo para falar sobre seus sonhos com as paredes — após tocar com o cassetete nas grades da cela, falou o guarda, retirando-se. A forte chuva se estendeu por toda a manhã, cessando no início da tarde de sábado, o dia seguinte.

Transgressores e renascidos (história Completa)Onde histórias criam vida. Descubra agora