Ebenizer Wangard dormia em sua cela após finalmente vencer a insônia que o havia levado a uma exaustiva reflexão acerca de sua situação em uma madrugada chuvosa que parecia nunca chegar ao fim. Cinco meses na prisão, sob a incerteza do que poderia vir pela frente, só fazia aumentar o desânimo que distanciava Ebenizer cada vez mais dos ideais que o levaram até ali. Desde o dia em que o escravo Sabá foi levado à forca, Ebenizer Wangard permaneceu sem companheiro de cela, tendo apenas a visita de um oficial que três vezes ao dia levava suas refeições e de dois guardas que o levavam para o banho no início da tarde.
Três e meia da madrugada, o incessante som da chuva era a única coisa que quebrava o silêncio naquele lugar, até Ebenizer ser despertado por uma voz que não podia distinguir, uma voz que sussurrava seu nome insistentemente até ele se levantar. Ebenizer abriu os olhos e levantou-se assustado, olhou em volta e não viu ninguém. Um detalhe chamou sua atenção, a cela estava aberta, e não havia nenhum guarda vigiando, e o mais intrigante era o fato de que apenas a cela de Ebenizer estava aberta, as demais celas estavam fechadas e totalmente vazias. Ebenizer descartava todas as chances de uma fuga, e antes de sair hesitante da cela, considerou a possibilidade de estar diante de uma cilada.
— Olá! Tem alguém aí? — perguntou o rapaz, seguindo cauteloso pelo corredor. Depois de alguns passos, o corredor de acesso às celas tornou-se irreconhecível aos olhos de Ebenizer, pois parecia mais longo do que quando ele chegou à prisão. Alguns minutos de caminhada, e um nevoeiro surge à sua frente com uma luz embaçada no meio, uma luz média alternando nas cores azul e branco. Era tudo muito estranho, Ebenizer temeu e cogitou voltar para a sua cela, mas ao olhar para trás não viu nada além de uma escuridão densa que só fez aumentar o seu medo.
— Mas o que é isso? — perguntou Ebenizer, ao se ver envolvido pelo nevoeiro. Então, ouviu-se o ranger de uma porta se abrindo, e o som de passos lentos indo em direção ao rapaz que transpirava apreensivo diante daquela incógnita.
— Olá, senhor advogado — colocando a mão no ombro de Ebenizer, falou o estranho, surpreendendo-o, fazendo com que se afastasse assustado.
— Quem é você?
— Olá, doutor Ebenizer. Há muito tempo não chovia tanto assim nessa região, não sei se isso indica prosperidade ou se é sinal de tragédia
— falou o homem, estendendo a mão para cumprimentar Ebenizer. Um homem branco, de estatura mediana, cabelos e olhos pretos, barba cuidadosamente aparada, usando trajes finos e sapatos impecáveis, surge diante de Ebenizer.
— Ainda não respondeu a minha pergunta. Quem é você? — insistiu Ebenizer.
— Venha comigo, quero te mostrar algo — disse o homem, virando-se. O nevoeiro se desfez, e Ebenizer percebeu que já estava em outro lugar, um enorme salão com vários cômodos fechados.
— O que está acontecendo aqui?
— Senhor Ebenizer, escolha uma porta — disse o homem, sentando em uma cadeira.
— Você é um ilusionista? Basta! Saiba que não estou vendo graça nisso.
— Ninguém está de brincadeira aqui, senhor Ebenizer. Agora, escolha uma porta.
— Quem é você, quem foi que te enviou?
— Sou exatamente quem você está vendo. Agora, por favor, escolha uma porta e abra.
— Você é enigmático, vamos ver no que isso vai dar — falou Ebenizer, indo em direção a uma das portas. Ebenizer abriu a porta e deparou-se com um escravo preso com um viramundo, viramundo era um dispositivo de tortura que mantinha os escravos sentados com a mão esquerda ligada ao pé direito e a mão direita ligada ao pé esquerdo, causando assim grande desconforto e dor. Ofegante, o escravo parecia ter dificuldade para respirar, em suas costas havia marcas recentes de açoites esfregadas com sal e limão.
— Este é o Benjamin, conhecido como o pequeno miserável. Sabe qual foi o seu erro? É o mesmo que a maioria dos escravos comete, ele tentou fugir. O Benjamin era um rapaz bonito e saudável, que arrebatou os corações das moças na fazenda, não só das escravas, mas também das mulheres livres que serviam na fazenda onde ele morava. O seu senhor nunca se importou com os elogios que o escravo recebia das mulheres, contanto que o seu trabalho rendesse. Benjamin era um excelente cocheiro e tinha um jeito especial de lidar com os cavalos, ele tinha um dom, parecia que eles o compreendiam e o amavam. Benjamin podia contar com alguns privilégios dados por seu senhor, que além de recompensá-lo com boas roupas e um casebre longe da senzala, permitiu seu namoro com a escrava Euzébia, uma mulata que servia na casa grande. Poder viver ao lado de Euzébia era o sonho de qualquer um naquela fazenda, mas para Benjamin tornou-se um pesadelo, e tudo por causa da sinhá Olívia, a irmã caçula do patrão. Olívia mantinha uma postura esnobe, e o seu desprezo para com os escravos era tanto que ela não falava com eles nem para dar ordens; Olívia tinha uma serva branca, através da qual se comunicava com os negros da casa. Olívia tinha uma opinião contrária a da maioria dos jovens da sua convivência, visto que seus amigos eram quase todos contra a escravidão; mas ela carregava um segredo que jamais alguém poderia imaginar, um segredo capaz de arruinar a reputação de qualquer dama da elite, Olívia sentia uma atração pelo escravo Benjamin, um desejo sórdido que gerou um ciúme doentio, uma obsessão capaz de levá-la às últimas consequências. Quando soube que seu irmão havia consentido o relacionamento de Benjamin e Euzébia, Olívia irritou-se de tal maneira, que a todos se tornou notório o seu mau humor, embora ninguém pudesse imaginar o motivo. O que Olívia sentia por Benjamin não era amor, era apenas um desejo sujo alimentado por sua personalidade possessiva e egocêntrica. Olívia iniciou uma perseguição contra Euzébia, colocando-a constantemente em situações difíceis para poder argumentar contra ela, e em algumas ocasiões chegou até mesmo sugerir que a escrava fosse vendida. Benjamin não suportou ver sua amada sendo maltratada daquele jeito, e também não gostou da ideia de ver diminuída a frequência de seus encontros com Euzébia por causa dos caprichos da sinhazinha, então o rapaz decidiu fugir com a moça e recomeçar sua vida bem longe da fazenda, mas foram descobertos, e a ira de seu senhor caiu sobre eles. Euzébia foi vendida e nunca mais se teve notícias dela naquele lugar, para Benjamin restou a amargura de ficar sem sua amada, e ainda sofrer um severo castigo. Sei o quanto isso é revoltante aos olhos de um idealista, mas acho que o Benjamin podia ter sido mais inteligente, talvez não chegaria a esse ponto se tivesse suportado um pouco mais a perseguição da sinhazinha Olívia.
— Por que está me contando essas coisas?
— Para que possa ter certeza das decisões que está tomando — respondeu o homem, levantando-se da cadeira.
— E como você sabe que tenho tomado decisões?
— Vá por mim, é uma causa perdida.
— Por que está dizendo isso?
— Olha, também não concordo com a crueldade dispensada aos escravos, nem acho que o valor de uma pessoa se define pela cor da pele, mas estou convencido de que realmente não vale a pena ficar brigando por causa disso.
— Você me intriga.
— Estão sendo elaboradas leis que visam acabar com os maus-tratos, e não vai demorar muito para vigorar, logo logo a escravidão no Brasil chegará ao fim, os escravos terão uma vida mais digna, só precisarão suportar mais um pouco.
— E desde quando há dignidade na escravidão? — questionou Ebenizer.
— Não há dignidade na escravidão, só estou dizendo que uns nasceram para governar e outros nasceram para servir.
— Você só pode ser um aristocrata louco — falou Ebenizer.
— Você está na prisão por causa dos negros que não conseguiu libertar, não pense que você é um herói, pois eles sabem que você é apenas um homem branco tentando ser o protagonista na história deles. É tudo uma grande perda de tempo, e eles o amaldiçoam a cada castigo que a tua frustração lhes custou. — O homem fez um movimento com a cabeça em sinal de despedida, e virou-se para ir embora.
— Espere. Para onde você vai?
— Há muita coisa em jogo, muito mais do que você pode imaginar — disse o homem. Ebenizer observava o homem se distanciando, enquanto a escuridão começava a tomar todo o ambiente, e o barulho da chuva ia aumentando. O desespero tomou conta do rapaz, que perdido no escuro, não sabia o que fazer, até que despertou subitamente dentro de sua cela.
— Hã? Foi apenas um sonho, mas parecia real — falou o rapaz encharcado de suor.
— Ei, o que está havendo aí? — perguntou o guarda, aproximando-se da cela.
— Nada, não está acontecendo nada, está tudo bem por aqui, eu tive um sonho estranho e acordei pensativo, foi só isso.
— Então cale a boca e volte a dormir, ainda são quatro horas da manhã, você terá o dia todo para falar sobre seus sonhos com as paredes — após tocar com o cassetete nas grades da cela, falou o guarda, retirando-se. A forte chuva se estendeu por toda a manhã, cessando no início da tarde de sábado, o dia seguinte.
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Transgressores e renascidos (história Completa)
VampireUm conflito de classes, um confronto entre entidades, uma batalha nas sombras, segredos que nunca se imaginou que pudessem haver no Brasil pós colonial. No ano de 1880, uma escrava fugitiva e um advogado abolicionista vivem uma experiência surreal...