Ouvir

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Ele tem trabalhado demais, tem estado insatisfeito com tudo, sabe?! Inconformado, talvez precise apenas esfriar a cabeça.

Pediu férias, decisão meio óbvia, mas ele não busca aventura em suas decisões, apenas descanso. As férias que pediu? Negadas. Quase já esperava por isso, o stress e o desconforto tomam conta. Sua cabeça está prestes a explodir, acredito que não literalmente, claro.

Mas tudo vai melhorar.

Um feriado providencial o aguarda.

Hoje é o último dia de trabalho antes de um longo feriado, os ponteiros do relógio na parede branca do trabalho parecem congelados. Um café com muito açúcar é que o ajuda a não dormir e a passar o tempo. Mal pode esperar para acabar o expediente.

Parece que o café funcionou, é quase hora de ir.

O chefe convoca uma reunião faltando cinco minutos pro fim do expediente e não adianta o assunto.

Nada de mais na reunião, algumas novidades sobre horários, alguma outra coisa sobre alguém sendo elogiado de forma genérica, alguém que podia ter pedido demissão e não o fez, ninguém sabe o porquê. O fato é que atrasou sua volta pra casa.

Saiu. Está agora no metrô. Não é o melhor caminho pra casa nem o mais curto, mas ironicamente é o mais rápido. O metrô está mais cheio que o normal, provavelmente é por conta do grande evento que acontece na cidade, ele não liga, só quer chegar em casa e esfriar a cabeça.

O metrô fica, a cada estação, mais cheio. É sua hora de sair do metrô, e por culpa de um mau planejamento é hora de quase todos saírem do metrô também.

Muita gente aglomerada, ansiando por um passo a mais na direção da roleta que marca a saída do metrô.

E é subindo a escada que ele ouve. Quase um cochicho em meio ao efusivo falatório dos desconhecidos.

Nenhuma outra pessoa parece ter ouvido, se ouviu não deu importância.

Seja quem for, disse: "Noventa dias.".

Não deu pra ver quem era, mas era a única pessoa que não estava lá, indo pra saída. A frase muito sonora na mente dele, pareceu quase cantada. Ele até pensou em ir atrás. Quem sabe descobrir quem falou, se falou, se foi com ele ou para ele. Mas havia realmente muita gente. Numa escada rolante quase sem fim.

É difícil ir na direção oposta quando todos seguem um mesmo caminho, quando até o chão te leva numa outra direção. Mas ele sabia que alguém, seja quem for, decidia por si pra onde ia. E gostou disso.

Mas o mais interessante é que agora sua cabeça não está mais cheia de uma profusão de coisas. Tem apenas "noventa dias" se repetindo na forma de uma música tranquila, uma música que nunca tinha ouvido antes. Tudo o mais é silêncio agora.

Neste mesmo dia, quando chegou em casa, tomou um longo banho quente e foi fazer um café. Neste momento foi que percebeu que tinha esquecido de comprar açúcar. Deixou o café pra lá.

Viu meia dúzia de coisas na internet, a televisão já não é ligada a alguns meses. Na rua... Não, ele prefere nem pensar na rua agora.

Já está tarde mesmo, o melhor a fazer é ir dormir.

Ele arruma a cama, no caso, desarruma e deita. Ainda está surpreendentemente silencioso. Ele fecha os olhos e imediatamente ouve... Noventa dias. Ele abre os olhos rápido, assustado.

A voz é tão clara quanto antes, é quase como se alguém ali do lado dele tivesse falado ao seus ouvidos e desaparecido ao vento.

Ela, a voz, está aqui na minha cabeça. E sinto que ela não vai embora.

Foi difícil dormir. Toda vez que fechava os olhos ouvia novamente a voz sem rosto, mas em algum momento, a frase foi vencida pelo cansaço e finalmente dormiu. Sonhou com muitas coisas mas não pode lembrar de nada ao acordar, nunca lembrava.

Acordou mas não abriu os olhos, não tinha que trabalhar, se recusou a acordar, virou de um lado para o outro, buscando alguma posição mais confortável pra voltar a dormir e assim o fez mais de uma vez, nenhum destes cochilo durou mais que vinte minutos e o menor deles não deve ter durado nem ao menos dois.

A luz do Sol já entrava pela fresta da janela e sua coluna estava começando a ficar dolorida. Decidiu que era hora de levantar. Se esticou bastante na cama, estalando praticamente todas as articulações, realmente precisava de descanso.

Respirou fundo, abriu os olhos e imediatamente ouviu nítida a mesma voz de antes, no metrô, dizer "Oitenta e nove".




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⏰ Last updated: Mar 27, 2023 ⏰

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