Capitulo 1 - Cidade Caótica

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I

Cidade Caotica

"Tempos sombrios requerem pessoas    mais fortes. Por sorte, nascemos em um berço de ódio."

Olhei no fundo dos olhos da besta. Seus pelos eram negros, olhos azuis e dentes pontudos manchados de sangue. Em seu olhar havia apenas o ódio mais puro que somente os desejos que uma monstruosidade faminta poderiam esboçar. No lado esquerdo de seu rosto havia uma enorme cicatriz, que começava acima de sua sobrancelha e ia até alguns centímetros abaixo de seu olho, se estendendo até a lateral do nariz. Ele estava curvado, pois sua altura era superior ao pequeno cômodo em que estávamos. A água da torneira caiu sobre minhas mãos, assim pude finalmente lavar meu rosto. Esfreguei meus olhos com força, para em seguida abri-los e olhar novamente para o espelho. O reflexo mostrava apenas o meu rosto agora. Toquei minha cicatriz para me certificar de que aquele reflexo era realmente meu. Ironicamente, um rosto que viveu por um século ainda aparentava ter apenas trinta. Tirando as marcas que o tempo deixou, ainda sou o mesmo garoto de sempre.

Do interior de um estojo que estava sobre a pia, tirei uma pequena seringa. Balancei o líquido vermelho em seu interior e injetei-o na minha nuca. Respirei fundo, e o ar gelado fez com que fumaça saísse de minha boca ao expirar. Ao injetar todo o material, soltei a seringa vazia na pia. Andei pelo apartamento sombrio. A única fonte de luz do local era a que a lanterna presa no braço de meu violão emitia. Ao lado do instrumento, estendida no sofá decrépito, peguei uma imensa lona que devia ter o dobro de meu tamanho e três buracos. Pelo maior, coloquei minha cabeça, e meus braços nos outros dois orifícios restantes.

O pano deslizou por todo meu corpo nu e cheio de cicatrizes, e ao apertar um botão próximo a abertura do tecido, ao lado de meu pescoço, aquele simples pano se ajustou perfeitamente em meu corpo, como se cada peça tivesse sido costurada usando minhas medidas. A gola alta cobria até metade de meu pescoço, e se estendia em volume completando-se em um sobretudo, totalmente preto e com aparência similar a couro, até as luvas foram geradas e tinham a mesma cor. Por baixo de tudo isso, havia uma calça escura e uma camisa manga longa de mesma coloração, mas ambos não eram vistos totalmente, já que uma espécie de avental branco servia de acréscimo e contraste para o restante da roupa, ainda em condições perfeitas, sem parecer que fora usado uma única vez.

Olhei novamente para o espelho do banheiro conectado à sala. Ainda era eu refletido, mas agora meus olhos azuis tinham uma diferença de tonalidade, tornando-se mais escuros quanto mais próximo da pupila. Peguei o violão manchado de sangue seco, e fui até a janela do local. Não havia escadas, apenas um enorme cano que entrava no apartamento e fixava-se na construção de cima a baixo. Agarrei a tubulação e comecei a descer, e em certo momento, segurando-me com apenas uma mão, me inclinei para ter a visão da cidade. Olhando para cima, nada além de uma escuridão infinita. Os prédios eram enormes e não apresentavam nenhuma variedade de cor, além do cinza. No centro da cidade, onde os edifícios eram maiores e mais largos, havia um enorme corpo robótico de muitos metros de altura, caído e destruído. Havia uma infinidade de ruas terrestres, mas também estradas flutuantes que se enfiavam por entre o espaço de uma construção e outra. Mesmo enorme, não havia mais nada ali. Ao menos nada vivo. Porém, cá estou.

Irmão, às vezes queria tê-lo comigo, para que essa minha solidão fosse aliviada por um segundo, mas seria egoísta de minha parte te fazer viver aqui. Não sei onde está, ou se há algo após a morte, ou se ao menos ainda está vivo. Porém, peço a Deus que você esteja em algum lugar longe daqui. Longe dessa atmosfera opressiva. Longe desse berço feito de ódio. Não sei o porquê de minha alma ainda estar presa aqui. Não há um sentido aqui, assim como também não há luz. Porém, cá estou.

Exiled: The Sound Of Memory Wo Geschichten leben. Entdecke jetzt