Fase 3 | Tempo

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Sob o céu cinzento daquela tarde, o velho guiava Chico a passos largos pelo imponente canteiro de obras que um dia seria a fábrica de automóveis. O cabelo grisalho perdera o brilho e o rosto trazia marcas da exaustão acumulada nos últimos dias. O cansaço, no entanto, não era físico pois com este aprendera a lidar desde pequeno. Era a cabeça que doía, atormentada de forma incessante pela decisão que teria que tomar. E cada dia que se passava era um dia a menos para dar o veredito sobre o futuro da neta — e de Chico.

Mesmo o barulho caótico do lugar não conseguia penetrar nos ouvidos do homem. Sua mente estava cheia com a discussão que tivera com a esposa. Deveriam ou não vender o cavalo? Ele era a coisa mais preciosa para a neta. E ela era a coisa mais preciosa para eles. Mas de nada adiantaria o sentimento se não tivessem dinheiro para comprar os remédios - e a mulher fora veemente neste ponto. Mas para a sorte do velho, não encontrara o homem de terno novamente. E desta forma, dia após dia, postergava o inevitável.

Apertou com força as rédeas de Chico e respirou cansado. "Como diabos isso foi acontecer?" Lembrou da época em que chegaram a São Paulo. Compram um terreno afastado do centro, grande o suficiente para manter um horta e as galinhas. A mulher trabalhava em casa e ele fazia de tudo um pouco na cidade: ascendia os postes, entregava leite e fora até mensageiro da prefeitura no auge da forma física. Com o dinheiro que ganhava, viviam uma boa vida, eles e a filha. Mas o tempo passou e as coisas mudaram.

A cidade avançou rápido e o terreno que antes ficava na periferia agora era área urbana. E quanto mais avançava, maiores eram os impostos cobrados. O trabalho do velho já não valia tanto quanto antes e aos poucos tiveram que vender os pedaços da terra que um dia fora deles. Ao final sobrara apenas a casa e um pequeno pedaço de mato — onde Chico costumava pastar. Se a filha e o genro ainda estivessem ali poderiam ajudar, mas...

"Não!" Não queria pensar na filha. Ainda doía. Fechou os olhos por um segundo e a cabeça estava tão aérea que não ouviu os gritos de aviso. "Cuidado!" A viga que segurava uma parede de concreto cedeu e toda a estrutura caiu. Não fosse por Chico desviar a carroça na última hora, o velho estaria morto. O movimento, porém, teve seu preço. O corpo do homem foi arremessado metros da carroça e se chocou com chão. Ele apagou.

Ao abrir os olhos se viu no casamento da filha. Foi tomado por uma sensação de leveza. Olhou para os pés e percebeu que estava flutuado, mas aquilo não o incomodava. Ouviu a filha dizer sim para o marido e em seguida as palmas dos convidados inundaram igreja. Sorriu ao relembrar o momento, mas a cena logo desapareceu em fumaça e ele foi transportado para o dia em que recebeu a notícia de que seria avô. Sentiu a mesma emoção que sentira na época, mas não pôde aproveitá-la pois foi rapidamente levado para outras épocas da vida.

Reviveu o nascimento da neta, Maria — nome escolhido por ele próprio. Viu ela engatinhar, depois andar, correr e finalmente cair. Reviveu o dia em que dr. Albieri fora a sua casa para dar o diagnóstico da doença da garota. Ficou devastado. Fora então que viu a filha chegar com um cavalo em casa. Tinha os pelos cor de cobre e a crina lisa como veludo. "Quando você melhorar, poderá montá-lo," ela disse a Maria. E a partir daquele dia a presença de Chico trouxe de volta o sorriso no rosto da garota e o brilho único em seu olhar. O velho tinha os olhos cheios de lágrimas.

Abriu os olhos novamente. Desta vez não estava delirando. Viu a enfermeira se aproximar da cama em que estava deitado e aos poucos recuperou a consciência. Ela chamou o médico, que explicou o ocorrido. Apesar da costela fraturada, disse que o velho estava bem, estava livre para ir embora, mas precisava descansar. Disse que era um homem forte para a idade que tinha.

"Cadê meu cavalo?" ele perguntou e a enfermeira apontou para um homem sentado no canto da sala. "O sr. Waltz o trouxe até aqui. Ele poderá lhe responder." A imagem do homem de terno chamado Waltz fez a espinha do velho estremecer. "Droga," pensou. Desviou rapidamente os olhos para a janela afim de não demonstrar a insegurança. Ficou calado o tanto que pôde, mas sabia que hora ou outra teria que encará-lo. Teria que encarar o inevitável.

"É bom vê-lo novamente, senhor," disse Waltz, "fico feliz que esteja bem." O velho o encarou e forçou um sorriso. Mas ainda não estava pronto para falar. "Devo dizer que o movimento rápido do seu cava... do Chico, me deixou perplexo. Acredito que ele salvou sua vida e por isso volto a dizer, é um belo animal." O homem de terno se levantou e sorriu. "Obrigado," o velho finalmente respondeu.

O sr. Waltz explicou em detalhes o que ocorrera durante o acidente e disse que como era o único com um automóvel no local, se prontificou a trazer o velho ao hospital. Chico estava aos cuidados de alguns trabalhadores no canteiro de obras, mas estava bem — em nada sofrera o animal. Aquilo acalmou o velho homem, mas não o suficiente para aliviar dor que sentia ao encarar o destino. "Bom, agora que está bem, vou voltar à construção," Disse Waltz, "Mas fique tranquilo que pedirei para alguém levar Chico a sua casa e avisar sua família."

O velho agradeceu novamente e vendo que o homem andava em direção à saída da sala, juntou todas as forças que ainda tinha e o chamou: "Espere sr. Waltz," o velho sabia o que tinha que fazer, "ainda temos um assunto a tratar.


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Copa dos Contos 2023Where stories live. Discover now