dois

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Maitê não sabia porque via gente morta. Não havia ninguém em sua família que tenha passado, mesmo que momentaneamente, por alguma experiência sobrenatural. Nunca jogou ouija ou apertou três vezes a descarga para chamar a loira do banheiro. Também não tinha o costume de assistir filmes de terror, tampouco ler livros. Jamais esteve em cultos satânicos ou participou de rituais para adorar a demônios ou coisas do tipo.

Ainda assim, via gente morta.

Não começou do dia para a noite, certamente, e demorou um bom tempo para que a garota entendesse o que estava acontecendo.

Tinha doze anos e seu pai estava muito doente há muito tempo, talvez cinco ou seis anos. E na verdade, tinha plena consciência de que a morte já o havia agarrado antes mesmo de seu coração parar — o câncer era uma doencinha perversa e eficiente, sempre vencia em alguma medida. Quando não matava, debilitava seu hospedeiro até que não conseguisse levantar de uma cama. Quando desaparecia, gerando esperança e felicidade, voltava em cada centímetro de carne e vida que pudesse ocupar. E, no caso do seu pai, desempenhou muito bem a função de devorá-lo vivo enquanto ela assistia.

E quem sabe o luto tenha sido a brecha que seu dom precisava para florescer?

Uma semana após a morte, a garota acordou pela manhã com os olhos ardendo e inchados de tanto chorar. Como não havia fechado a janela na noite anterior — estava ocupada demais curtindo sua dor —, a luz forte do sol atravessou suas íris e quase pôde senti-la queimar seus neurônios. A dor na cabeça era imensurável. No entanto, tão alarmante quanto um balde d'água e tão sutil quanto um carinho no rosto, um cheiro passeou por suas narinas. Maitê passou alguns segundos tentando lembrar de onde conhecia aquele aroma; era amargo, mas ao mesmo tempo acolhedor e lhe trazia certo afeto.

Meu pai está aqui, o pensamento dançou em sua mente.

Assim, de repente.

E também foi de repente que o cheiro se dissipou.

Maitê passou bastante tempo suspirando pelos cantos, tentando encontrar seu pai. Depois de algumas semanas sem sinal algum, convenceu-se de que fora apenas uma ilusão criada pelo luto. Ou que talvez nem fosse de fato o cheiro de seu pai, mas para aquele momento e para aquela dor, sua mente enfeitou odores aleatórios para lhe trazer um pouco de acalento, de conforto.

Bom, queria que estivesse certa naquela época.

— Com licença — ouviu uma voz.

Era uma senhora sentando-se no banco ao seu lado. Maitê chegou um pouco mais para o lado, a fim de se distanciar. Nos fones, Nina Simone dava som a Blues For Mama, sequestrando-a do burburinho incessante e exaustivo do metrô. Ainda assim, não negava os dez reais que gastara neles há poucos minutos bem ali, naquele vagão, de um rapaz com voz potente que dissera ter uma família grande e pouco dinheiro. O volume estava no máximo, mas podia ouvir duas mulheres falando sobre exercerem três funções no emprego e receberem apenas por uma. Aparentemente, seu chefe abusivo imaginava que elas eram algum tipo de promoção pague-um-leve-três. Também podia ouvir a fofoca de um grupo de jovens próximos às portas automáticas; um casal se separou e estavam apostando sobre o motivo. A maioria acreditava em traição. Havia um homem sentado no banco à sua frente que não parava de mascar o chiclete de boca aberta... o som ascoso era persistente e, depois de quinze minutos escutando sem trégua, parecia estar se equiparando ao ritmo da música.

Maitê tinha essa capacidade de concentrar a atenção sonora de tal modo que processava muitas coisas ao mesmo tempo. Achava que, por conseguir ouvir até mesmo os mortos, estava sempre em alerta, esperando por gritos e pedidos de socorro. Acontecia com frequência. Portanto, sabia que a culpa por ouvir tudo aquilo não era do fone de baixa qualidade e sim do medo. Preferia ouvir por horas o homem mal educado à sua frente, a fofoca, as reclamações do trabalho ou a senhora ao seu lado, que virou-se subitamente e lhe dirigiu as palavras:

Cicatrizes Sob Argila Where stories live. Discover now