Capítulo 01

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Da calçada do meu prédio, abro o portão de ferro e tenho acesso às escadas. Com três andares de penitência pelo caminho, subo os degraus inspirada pelo suco de caju que me aguarda na geladeira. Sempre que preciso me ausentar, não vejo a hora de chegar em casa, tirar o sutiã e saquear os salgadinhos da despensa. E se eu achava que hoje seria só mais uma segunda-feira comum, sem grandes acontecimentos, uma cena bastante intrigante me faz brecar os passos no último lance de escada. Em frente à porta do meu apartamento, tem duas malas grandes tomando um arzinho do lado de fora.

Merda. Bem sei do que se trata. O mentor da maldade é o Seu Firmino, dono do apartamento que alugo. Ele me alertou no mês passado que recorreria aos seus direitos de proprietário, se eu continuasse inadimplente. E como estou há dois meses sem receber salário, porque a empresa onde eu trabalhava fechou, não tive como fazer a mágica. É fácil acharem que uma auxiliar de cobranças jamais será cobrada por contas em atraso, do tanto que é irônico. Mas aqui estou eu, provando que é possível.

Testo a chave na fechadura, e as duas se estranham. Acho que nem grafite em pó me salva de dormir na rua. Forço a maçaneta em uma vã esperança de que a porta tenha sido esquecida apenas no trinco, mas aquele homem é mais esperto do que um golfinho saltando por uma argola.

— E aí, Kelly! Beleza? — Breno, morador do 406, desce as escadas com seus passos de pilão.

É um cabeludo com fama de nerd, marcas de espinhas no rosto e só tem essa camisa do Ramones.

— Não muito, cara. Tô com um probleminha pra entrar em casa. — Ganhar na Mega-Sena resolveria esse e metade dos imbróglios da humanidade.

— Ih, lascou! — Ele coça a cabeça encoberta por fios castanhos. — O Senhor Barriga tava mexendo na tua porta hoje cedo.

— Droga! Ele deve ter trocado a fechadura — digo, mudando a mochila de ombro. — Tô com o aluguel atrasado. Foi a forma que ele encontrou de se vingar.

Ficamos um tempo encarando a porta, como se ela fosse abrir com o poder de nossas mentes.

— Precisa de um help com alguma parada? — Breno se refere às malas, que presume de minha propriedade.

Desconfio de que ele só ofereceu ajuda para não ser tachado de egoísta e não por questões de solidariedade genuína, então decido poupá-lo do sacrifício e acabo recusando a oferta, mesmo sem ter um plano em mente.

— Valeu, mas deixa que eu dou um jeito.

— Beleza então, Kelly.

Depois de uma batidinha em meu ombro, Breno volta a descer as escadas. Daqui, ouço uma voz feminina se avolumando, deve ser a vizinha que está subindo.

— Sujeitinho mal-educado. Só anda todo arreganhado. Ocupa a escada inteira.

Essa não é a primeira vez que flagro Carmen resmungando. No final da escada, ela crava seus chinelos no corredor do andar. Eu me encolho, fingindo mexer na mochila apoiada nas malas, numa inútil tentativa de ficar invisível.

— Ah, você está aí, meu colírio? — Carmen entorta a cabeça, me observando por trás de uma pilastra imaginária. — Por favor, não fuja. Estava mesmo precisando falar com você.

Ela agora tremelica a mão e assustadoramente se aproxima. O que essa velha quer comigo? Está usando um maiô preto com recorte na região entre os seios, uma chemise florida e um chapelão com aba de peneira.

— Tá vindo da praia, dona Carmen?

— Não, querida. Estou vindo do Fórum Clóvis Beviláqua. — Ela se planta espaçosa na soleira da minha porta, como se eu já não estivesse impossibilitada de entrar em casa. — Preciso que você verifique o encanamento da minha cozinha.

Salto Duplo (romance lésbico)Where stories live. Discover now