Nada de festas, música alta e cigarros duvidosos

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Thiago era um homem de palavra, por isso aguardou exatos dez minutos antes de entrar com Henrique Saldanha em sua casa. Aproveitou o tempo para questionar o seu – talvez – futuro colega de quarto, ou casa já que cada um teria seu dormitório.

O sujeito era estranho, um tanto quanto reservado e misterioso aos seus olhos. Parte dessa impressão era por culpa dos óculos escuros. Embora não estive frio, tampouco havia sol, não existindo motivo para o acessório. Estranho! Mas o cara podia precisar como o do KLB¹, Bono Vox² ou fosse apenas um estilo alternativo. Cada um com suas estranhezas. Tinha as próprias para se preocupar com as dos outros.

Obviamente, estudavam na mesma faculdade. Curiosamente, faziam o mesmo curso - Educação Física -, porém Henrique estava no terceiro semestre, enquanto Thiago estava no quinto. Mesmo sendo um ano mais novo, Henrique tinha uns bons centímetros a mais e um corpo encorpado.

Não parecia perigoso. Seus amigos e sua mãe discordariam, argumentando que ele era bondoso e inocente demais na hora de julgar o caráter alheio – prova disso era o antigo colega -, mas havia algo naquele cara que lhe transmitia confiança. De qualquer forma, era crescido o bastante, e hábil em três tipos de luta, para tomar conta de si próprio.

E tinha Majin, seu fiel amigo canino. Tudo bem que o cachorro de onze anos preferia dormir o dia todo, mas quando preciso era um protetor de dentes pontiagudos eficazes.

Para a segunda sorte de Henrique, Majin parecia concordar com o amigo humano e, depois de farejar bem o tenso Saldanha, se recolheu na casinha ao lado da garagem. Uma mensagem clara que considerava que Thiago estava seguro com o estranho... Ou cansado de bancar o cão raivoso. Preferia crer na primeira opção.

Assim como fizera com Jin, antes de levar Henrique para dentro de sua casa, falou sobre sua orientação sexual, acrescentando - devido à experiência com o ex.colega - que recebia visitas constantes de amigos GLBT. Henrique não mostrou qualquer aversão. Embora Jin também não demonstrou até a noite anterior.

Mostrou os dois cômodos que compartilhariam - sala e cozinha -, buscando algo nele que entregasse se gostou ou não. No entanto, com os óculos escuros ocultando os olhos ficava difícil definir.

A sala era mobiliada com sofá de quatro lugares marrom, comprado pouco antes de Thiago se mudar, cerca de dois anos atrás; estante de madeira com apenas o televisor, dvd e o vídeo game; a mesa de centro vivia amarrotada com os lanches que comia quando estava no local. No momento estava um tanto quanto bagunçada, com livros das aulas jogados nas brechas da estante e do sofá. Itens aleatórios e embalagens diversas de comida esquecidas em cada canto possível.

A pequena cozinha tinha uma velha mesa quadrada com quatro cadeiras, sendo uma relativamente bamba. A geladeira também era velha, precisando ser fechada com atenção, pois a borracha estava muito gasta, mas servia ao seu propósito. A janela acima da pia – lotada de louça - precisava de uma limpeza (a casa toda). Os armários de madeira estavam praticamente vazios - tanto ele quanto Jin não paravam em casa, preferindo comida pronta entrega -, mas em boas condições, apesar das teias de aranha e o cheiro esquisito.

— A parede em bloco de concreto é um diferencial — disse para mover a atenção do Saldanha para longe da pilha de louça de duas semanas. Assim como a sala, a cozinha estava longe de ser organizada. Thiago não era adepto da organização. Mas que rapaz aos vinte anos morando sozinho – ou quase - era? — Minha mãe fez essa casa para durar séculos e valer alto se eu decidir vender ao terminar a faculdade — complementou apressando o passo para fora do cômodo.

— Sua mãe fez a casa?

— Ela é a melhor engenheira da cidade em que nasci — Thiago se parabenizou mentalmente. Contava com o talento de Fátima Padilha para desviar a atenção da bagunça. — Aprendeu com meu avô. Agora tem seu próprio negócio de construção e uma equipe de construtores. Essa casa foi meu presente de dezoito anos e também uma forma de me dar um lugar para morar enquanto estiver na faculdade. Ela não desejava me afastar do Majin, meu cachorro, e não confia nas repúblicas.

Em parte era verdade. Sua mãe percebeu o quanto o filho temia se afastar de Majin, seu fiel amigo durante as dificuldades. Todavia, o que a fez construir a casa foi um episódio lamentável quando visitaram uma república perto do campus.

Henrique assentiu compreendendo os receios da mãe de Thiago. Seus pais não gostaram quando ele foi aprovado em uma faculdade em outro estado, e um dos motivos foi à procura por um local para morar durante o curso. Previa sua mãe fazendo uma pesquisa profunda do passado e todos os antecedentes do Padilha – como fizera sobre o pensionato - caso se mudasse.

Thiago levou Henrique ao quarto que ocuparia caso decidisse ficar. Era minúsculo, só cabia à cama de solteiro e uma escrivaninha de canto.

— Esse cômodo era para ser uma espécie de escritório ou quarto da bagunça. — Henrique o encarou com a sobrancelha erguida, no mínimo lembrando a bagunça generalizada nos outros cômodos, incluindo aquele. Jin também não era fã de limpeza. — A cama e o colchão são do Jin, o cara que saiu. Ele deve buscar ainda hoje, espero. Tenho um colchão inflável caso precise. A escrivaninha pode pegar ou levo para o meu quarto, que fica ao lado. — Não fez menção de mostrar por não ver necessidade. — No fim do corredor tem um banheiro. Será seu. Tenho um no meu quarto. — Novamente não fez a menor tentativa de mostrar. Sabia que, assim como o dele, aquele banheiro estava em péssimo estado. — Então, o que achou?

Henrique ajeitou os óculos escuros, um hábito que significava concentração, analisando o quartinho de paredes brancas cheias de marcas de mãos, riscos, sujeira e até alguns desenhos e frases. O chão – da casa toda na verdade – devia desconhecer um pano com desinfetante há anos. A janela de metal era de correr e dava para o quintal dos fundos, onde conseguia ver um tanque, amarrotado de roupas, o varal com somente os pregadores pendurados e a grama ressecada. Não era a melhor vista. Porém, não necessitava de paisagem bonita, precisava de paz para estudar e passar pelo curso sem grandes traumas.

O enorme cachorro, que apareceu correndo atrás de uma borboleta, parecia um problema superável dependendo do comportamento dele no dia-a-dia. Nascido e criado em uma fazenda, o barulho de animais jamais o incomodou. Eram os humanos que costumavam estressá-lo.

— Costuma dar festas?

Intrigado, Thiago encarou Henrique de cima a baixo novamente. Jurava que o Saldanha era avesso a comemorações.

— Esse é um bairro familiar, os vizinhos são capazes de chamar a polícia se o som estiver alto depois das oito — comentou.

— Ótimo! — soltou aliviado. Nada de festas, música alta e cigarros duvidosos interrompendo seus estudos.

— Por um instante achei que tinha me enganado ao achá-lo introvertido — Thiago disse rindo. — Que faria uma festa de arromba.

— Não sou contra socializações, mas priorizo os estudos —explicou incomodado com a risada e com as palavras que pareciam zombar dele.

— Você pensa como a minha mãe — Thiago contou sorrindo. — A escolha do local não foi por acaso. Ela temia que eu esquecesse os estudos para festejar com os amigos. E ela não estava enganada.

Thiago riu novamente, fazendo Henrique perceber que não zombava dele como seus atuais colegas de quarto. Parecia ser o jeito dele. Descontraído e bagunceiro. Um tipo que gostava de conversar e, pelo que percebeu, tinha o mesmo padrão nulo de higiene de seus colegas de dormitório. No entanto, não chegava a ser um problema quando simplesmente podia colocar uma porta trancada entre eles.

— Quanto cobra pelo quarto? — perguntou pronto para negociar.

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¹KLB: banda brasileira formada pelos irmãos Franco "Kiko" Scornavacca, Leandro Scornavacca e Bruno Scornavacca. No caso se refere ao Kiko que usava óculos escuros de grau.

²Bono Vox: Paul David Hewson (Dublin, 10 de maio de 1960), conhecido por seu nome artístico Bono é filantropo, compositor, empresário e vocalista principal da banda de rock U2. Sempre de óculos de sol devido sensibilidade à luz.

InsistenteWhere stories live. Discover now